Contos que Fogem do Livro: Continuidade dos Parques & Teoria do Caranguejo, de Julio Cortázar | Fantástica Cultural

Artigo Contos que Fogem do Livro: Continuidade dos Parques & Teoria do Caranguejo, de Julio Cortázar
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Contos que Fogem do Livro: Continuidade dos Parques & Teoria do Caranguejo, de Julio Cortázar

Por Paulo Nunes ⋅ 27 fev. 2022
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Quando tanto o leitor quanto o escritor se transformam em personagens literários, a própria literatura vira de ponta-cabeça, contorcendo-se de dentro para fora, e o único sentido possível encontra-se escondido na louca genialidade da arte.

Arte de Maurits Cornelis Escher (autorretrato)
Arte de Maurits Cornelis Escher (autorretrato)

A criação literária parece estimular os escritores a um constante pensar sobre o seu ofício, e sobre suas técnicas. A busca por criar um bom conto, um conto relevante, é uma aspiração constante para muitos contistas. Diversos autores chegaram a relevar ao público suas metodologias de composição, como Edgar Allan Poe, em A Filosofia da Composição, Horacio Quiroga, em seu Decálogo do Perfeito Contista, e Julio Cortázar, em Valise de Cronópio.

Partindo de suas investigações sobre as potências e os limites desse gênero literário, Julio Cortázar cria uma série de contos exploratórios que brincam com a relação narrador-leitor e tentam transpor as fronteiras entre a vida e a narrativa.

Dois ótimos exemplos desses exercícios são os contos Teoria do Caranguejo, que compõe a coletânea Papéis Inesperados, e Continuidade dos Parques, publicado na coletânea Final do Jogo.

Conto 1: Continuidade dos Parques

A serpente que engole a própria cauda

Leia o conto Continuidade dos Parques aqui.

Nesse brevíssimo conto, acompanhamos a experiência de um personagem anônimo durante sua leitura de um romance. De início, o texto nos narra sobre esse personagem e seu ato de ler, mas aos poucos, a narrativa mergulha suavemente no romance que o personagem está lendo, e passa narrar o conteúdo desse romance. Temos, assim, uma narrativa-dentro-da-narrativa. Histórias dentro de histórias, porém, não é nada novo ou incomum. A surpresa é outra.

Em dado momento, percebemos que a narrativa-dentro-da-narrativa passa a narrar a história do leitor que lia o romance, saindo do nível narrativo A principal tese postulada sobre o gênero conto é a de que esse tipo de ficção sempre conta duas histórias — isto é, que sua narrativa possui dois níveis: um explícito, evidente, e um oculto, somente sugerido. mais profundo (a história dentro da história) e indicando, paradoxalmente, que o personagem lia a sua própria história de vida no livro, descrevendo inclusive o seu ato de leitura.

Este paradoxo absoluto também não é de todo inédito na ficção, mas é menos comum. Assemelha-se a um Ouroboros, a serpente que engole a própria cauda: o leitor-personagem começa a ler uma história que, ao final, converge com a sua própria história. Na conclusão do conto, o personagem vê a si mesmo, de costas, lendo o livro que narra a sua chegada. As duas pontas se conectam. E quando o personagem que lê sobre si mesmo descobre que será assassinado (por si mesmo), baseando-se no que está lendo, o conto encontra seu final.

Mas o fenômeno da personagem-leitor olhando para as profundezas de uma narrativa e enxergando a própria nuca consiste não apenas em uma modelo brilhante de inventividade, mas também em uma base de espelhamento para o leitor real (isto é, você ou eu, leitores de Cortázar), podendo gerar certo desconforto e nos fazendo cogitar, talvez, olhar desconfiados para trás.

Ouroboros
Ouroboros

A continuidade, portanto, é sugerida de duas maneiras: uma no interior do próprio conto, visto que os dois níveis da narrativa se conectam por suas extremidades sem qualquer interrupção; e outra na relação entre o conto e o seu leitor real. Em ambos os casos, a continuidade é quebrada.

A principal tese postulada sobre o gênero conto é a de que esse tipo de ficção sempre conta duas histórias — isto é, que sua narrativa possui dois níveis: um explícito, evidente, e um oculto, somente sugerido.

Ricardo Piglia explica essa ideia em "Teses sobre o conto", um dos textos de seu livro Formas Breves. É claro que nem todo conto irá satisfazer essa regra, mas em geral a estratégia do contista é exatamente essa: narrar algo superficial e, por baixo dessa superfície, construir um nível mais profundo de significação.

No conto clássico, o nível profundo se releva ao final na forma de uma surpresa; no conto moderno, a significação profunda está presente do início ao fim, em uma tensão constante e jamais resolvida. Edgar Allan Poe provê alguns dos exemplos mais famosos do conto clássico, pois o segundo nível de suas histórias é revelado com um desfecho surpreendente. Por outra lado, podemos pensar em Hemingway como um bom representante do conto moderno, visto que seus contos são como retratos sucintos que, em sua brevidade narrativa, sugerem um contexto muito maior e mais complexo, revelando, assim, a parte pelo todo — por meio de um relance condensado e representativo de uma realidade mais ampla. Conhecemos a estratégia desse modelo literária como a teoria do iceberg, cunhada pelo próprio Hemingway.

Arte de Maurits Cornelis Escher
Arte de Maurits Cornelis Escher

O recurso mais evidente em Continuidade dos Parques é sem dúvida a surpresa final, herança óbvia do conto clássico. Se o texto se estende um pouco demais nos detalhes do romance lido pelo personagem, podemos supor ser essa uma estratégia de Cortázar para nos deixar ambientados dentro dessa nova história e, de alguma maneira, nos fazer esquecer de que existe um personagem-leitor, a fim de potencializar o efeito da surpresa final. Se o texto fosse mais curto, o choque certamente seria menor. "A estratégia do relato", como explica Piglia, "é posta a serviço [da] narração cifrada": nada é gratuito, e cada artifício utilizado busca garantir a solidez e o impacto da revelação.

Via de regra, o conto busca causar um impacto no leitor. Esse impacto pode se apresentar de maneiras muito diversas: Poe chamava-o de impressão, pois, segundo ele, o texto causa no leitor certo sentimento ou sensação; cada conto causa seu próprio efeito, de acordo com a composição efetuada pelo autor, e também de acordo com o perfil psicológico-emocional de cada leitor.

Em seu livro Assim se escreve um conto, Mempo Giardinelli explica:

Quanto mais perto do coração do leitor se crave, melhor será o conto. Para atingir esse efeito, o texto deve ser sensível: deve ter a capacidade de mostrar um mundo, de ser um espelho no qual o leitor veja e se veja. Isto é o que se chama de identificação (o leitor pensa que com ele se passou ou poderia ter se passado o mesmo).

Não é outro o efeito obtido por Cortázar em Continuidade dos Parques.

Se, no entanto, colocarmos à parte esse interessante recurso do espelhamento leitor-personagem, talvez o final de Continuidade dos Parques pareça um pouco simplório: em contos de menor criatividade, desfechos que incluem mortes/assassinatos constituem uma das saídas mais fáceis (se não a mais fácil) e automáticas para provocar a esperada surpresa final.

Uma famosa metáfora de Hemingway afirma que um bom romance vence seu leitor por pontos, ao passo que o bom conto o faz por nocaute: o conto, portanto, tem poucas linhas para causar seu impacto, para impor sua relevância literária, e é muito comum que ele se valha de artifícios extremos para tal fim. Talvez por isso Carlos Mastrângelo o identifique como o gênero menos sincero e realista das modalidades narrativas.

O próprio Cortázar argumenta, em Valise de Cronópio:

O contista sabe que não pode proceder acumulativamente [como no romance], que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente.

Em Continuidade dos Parques, essa verticalidade e essa profundida não estão presentes apenas na técnica narrativa — estão, também, no efeito causado pelo espelhamento de leitura, que confunde a realidade do leitor com o ambiente ficcional. Se Mastrângelo postula que o conto é "de ciclo acabado e perfeito como círculo", Cortázar o realiza de modo literal em uma estrutura circular — que termina onde começa.

Conto 2: Teoria do Caranguejo

O fazer literário como o próprio tema literário

Leia o conto Teoria do Caranguejo aqui.

Julio Cortázar, além de brincar com os limites do conto, incorpora o próprio fazer literário como uma de suas temáticas em Teoria do Caranguejo.

Arte de Douglas Hofstadter
Arte de Douglas Hofstadter

Esse texto vai seguindo aos espasmos: cada vez que sentimos que a narrativa começa a ganhar corpo e progredir, nós nos deparamos com uma interrupção — e descobrirmos, a cada uma dessas quebras, que tudo o que havíamos lido até então era na verdade um texto dentro do texto.

Existe, na narrativa convencional, uma relação simples entre narrador e personagem; aqui, ao inverso, vemos um narrador-personagem que narra sobre um narrador-personagem que narra sobre outro narrador-personagem — e essa cadeia jamais termina, embora o conto (este sim) precise encontrar seu final.

Como a criação literária é o principal tema de Teoria do Caranguejo, acompanhamos nesse conto um narrador-personagem em suas reflexões sobre a composição textual, sobre a escolha de palavras e sobre as impressões que tem de suas próprias personagens. Do início ao fim, o que Cortázar trabalha é a constante interrupção narrativa; e a conclusão do conto não apresenta qualquer desfecho (no sentido convencional da palavra).

Nesse sentido, Teoria do Caranguejo é um conto de proposta inteiramente moderna — pois, como identifica Piglia, o conto moderno não só abandona o Cortázar quebra o acordo implícito entre narrador e leitor. final surpreendente, mas trabalha a tensão entre as duas histórias (a história de superfície e a história oculta) sem nunca resolvê-la.

Se pensarmos nesse conto pelos termos da Filosofia da Composição de Poe, poderíamos identificar a impressão principal (o foco do conto) como sendo o processo criativo (falho) de um escritor; mas essa impressão, como já mencionado, tem dupla função. Deve haver dois níveis, um deles implícito. No caso de Teoria do Caranguejo, a impressão implícita é confundir a percepção típica do universo ficcional, a que os leitores estão acostumados. Cortázar quebra o acordo implícito entre narrador e leitor.

Franz Kafka também contribui um tanto (pelo menos em tese) para uma teoria do conto:

No primeiro momento, o começo de todo conto é ridículo. Parece impossível que esse novo corpo, inutilmente sensível, como que mutilado e sem forma, possa manter-se vivo.

Estaria ele se referindo ao começo da leitura de um conto, ou do início de sua composição? Ou ambos?

O fato é que, quando o escritor falha em seu processo de criação — ou quando chega em um ponto de onde não pode prosseguir —, alguns trechos (ou mesmo a ideia inteira de um conto) revelam-se abortos: mutilados, inutilmente sensíveis, acabam por morrer antes de completar sua forma. É precisamente esse fenômeno que assistimos em Teoria do Caranguejo: aborto sobre aborto, interrupção sobre interrupção. E, ainda assim, esse conto que aborda o fracasso não falha ele próprio.

Kafka prossegue, apontando para a necessária perfeição do conto, cujo começo deve justificar o fim, e vice-versa:

Cada vez que se começa, esquece-se de que o conto, se sua existência é justificada, já traz em si sua forma perfeita, e que só cabe esperar vislumbrar nesse começo indeciso o seu visível mas, talvez, inevitável final.


Nesses dois contos, o principal jogo de Cortázar é confundir a relação entre texto e leitor, embaçando as distâncias entre a realidade de quem lê e a realidade paralela do que é narrado. Seus esforços em transcender os limites do conto ficam evidentes em sua produção literária, mas não apenas nela. Em "Alguns aspectos do conto", texto presente no livro Valise de Cronópio, ele escreve:

Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta.

Arte de Maurits Cornelis Escher
Arte de Maurits Cornelis Escher

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador




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