De Ovelha Negra a Bode Expiatório: Por que toda sociedade precisa queimar suas bruxas? | Fantástica Cultural

Artigo De Ovelha Negra a Bode Expiatório: Por que toda sociedade precisa queimar suas bruxas?

De Ovelha Negra a Bode Expiatório: Por que toda sociedade precisa queimar suas bruxas?

Por Paulo Nunes ⋅ 17 nov. 2020
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

Com as histórias que contamos para nós mesmos, todos somos capazes de justificar nossos ódios, preconceitos tribais e contradições éticas, sempre com raciocínios aparentemente plausíveis. Nunca esperamos que o próximo bode expiatório seja nós mesmos.

bode expiatorio fanatismo ideologico
Em O Homem de Palha (1973), uma comunidade reclusa expurga suas "más energias" por meio de sacrifícios humanos periódicos.

John Lennon, há cerca de 50 anos, cantou ao mundo sua utopia de fraternidade global: Imagine. A canção propõe uma irmandade universal, uma humanidade sem fronteiras em que todos compartilham tudo, vivendo sem conflitos nem preconceitos. Mas nem os utopistas, que acreditam no sonho de Lennon, nem os mais céticos parecem escapar à sina tribal da raça humana: é da nossa natureza cultivar o antagonismo de facções, opondo o nós contra os outros em nossa visão de mundo.

Não importa o quão generosos, bondosos, éticos nós acreditamos ser, nossa gama de virtudes costuma ser reservada para as pessoas como nós, isto é, o grupo que identificamos como pessoas dignas de consideração. Aos demais, a desumanização costuma ser permitida.

bode expiatorio fanatismo ideologico
Enquanto o bullying juvenil expressa-se como uma pulsão cruel evidente, nua, o bullying social é racionalizado e, por meio de ideologias, mascara sua raiz emocional primitiva e irracional.

Sabemos que esse traço primitivo da espécie humana foi em boa parte amenizado pelas civilizações modernas, em que se tenta impor a racionalidade e a equidade na aplicação da lei. Mas não se engane: em cada um de nós, a pulsão ancestral continua a mesma. E isso tem ficado cada vez mais evidente pelo influxo de ódio tribal e de sanha vingativa que podemos testemunhar nas redes sociais, manifestações quase sempre travestidas como "desejo de justiça", e em sua transposição para o ativismo político contemporâneo. Assim como nas praças públicas da Idade Média, a opinião tendenciosa e pouco racional das massas formou no ambiente virtual uma espécie de tribunal da internet, e a cultura do cancelamento tem provocado consequências cada vez mais devastadoras na vida real das pessoas.

Em sua forma primitiva, o ódio tribal era explícito e não havia qualquer preocupação sobre sua ética. Minha tribo é boa e merece viver, a outra tribo é ruim e merece morrer. Com o avançar dos séculos, porém, esse ódio instintivo passou a exigir algum tipo de racionalização, uma narrativa que o justificasse. Por isso, hoje todos podem apresentar razões aparentemente plausíveis para fundamentar seus preconceitos e contradições éticas.

Assim, há uma forte tendência nos grupos (sociedades, religiões, movimentos políticos) para eleger seus bodes expiatórios. Esses eleitos podem ser alguns membros do próprio grupo (suas ovelhas negras), ou membros dos grupos rivais. E as acusações feitas contra eles podem ir desde totalmente legítimas até inteiramente fabricadas.

ideologias e seus bodes expiatorios

Ora são brancos contra negros, ora são negros contra brancos. Ora são homens contra mulheres, ora são mulheres contra homens. Ora são fanáticos religiosos contra infiéis, ora são revolucionários contra religiosos. Ora são os conservadores contra os progressistas, ora são os progressistas contra os conservadores. Em parte das vezes, é claro, as acusações são verdadeiras, mas quase sempre são distorcidas e exageradas pelo partidarismo, e às vezes são francamente falsas. E o resultado é sempre o mesmo: um ato em falso, o erro de um indivíduo, os crimes de uma minoria, o fomento de desafetos e intrigas, e as sociedades acabam se fracionando. Quando a imagem do inimigo está consolidada na mente das pessoas, para elas só há uma solução aceitável: sua eliminação da sociedade.

E a razão para tudo isso é muito simples.

bode expiatorio fanatismo ideologico
Movimento jihad islâmico.

O tribalismo foi regra durante quase 100% da existência humana. Desde os primeiros hominídeos até o recente homo sapiens sapiens, os homens eram incapazes de sobreviver fora de suas tribos. Sem o coletivo, os indivíduos perdiam acesso à variedade de alimentos, às ferramentas e bens coletivos, a parceiros sexuais, aos cuidados em caso de doença, e até aos abrigos. E estando sós, eram incapazes de se defender das tribos inimigas. Essa realidade, mantida por milhares de gerações, cristalizou em nossa espécie uma forte tendência coletivista, bem como o costume de desprezar e combater o individualismo, odiar visceralmente as outras tribos e reforçar a uniformidade de opinião interna. Foram esses tribalistas que lograram sobreviver às adversidades da natureza, e é deles que somos descendentes. Trazemos em nós os seus genes.

Essas características psicológicas e de comportamento serviam para manter a integridade da tribo, já que a dissolução do grupo tendia a extinguir a linhagem. Países em guerra, por exemplo, tendem a ser internamente mais unidos, porque seus habitantes são forçados a cooperar uns com os outros contra o inimigo comum. Entretanto, essas mesmas características podem provocar o efeito contrário em grandes grupos. O tamanho médio de comunidades tribais estáveis tendia a ser de 150 indivíduos, e sociedades maiores acabavam perdendo sua integridade grupal, dando origem a facções e segmentos marginais. Exemplos extremos desse fenômeno são a Inquisição e o Holocausto.

bode expiatorio fanatismo ideologico
Momento da libertação de vítimas de Auschwitz (1945).

Uma das funções do tribalismo é a canalização do ódio: uma forma de o ser humano projetar suas frustrações e angústias no outro. Para não admitir suas pulsões odiosas e irracionais, é conveniente ao indivíduo colocar a culpa de seus sentimentos em alguém (o bode expiatório), justificando assim seu estado emocional e suas ações antiéticas.

E infelizmente, o ser humano dificilmente enxergará seu tribalismo como irracional, ou seu ódio pelos "inimigos" como preconceito. Há sempre uma justificativa.

Os membros do grupo se parabenizam por suas virtudes, e costumam desculpar suas próprias faltas. Eles estão do lado certo da história, ou são o povo escolhido de Deus. Seus erros merecem absolvição. Uma visão realista nos levaria a perceber que todas as pessoas e grupos apresentam, em certa medida, ações boas e ações más; mas a visão tribal perverte essa objetividade ao classificar um dos grupos como intrinsecamente bom (mesmo que cometa atos ruins) e os grupos antagonizados como intrinsecamente maus (ainda que também pratiquem atos bons). Por consequência, tudo o que se faça contra o grupo antagonizado é visto como bom, belo e justo (moralmente certo e legítimo).

bode expiatorio fanatismo ideologico
Até outubro de 2020, os protestos violentos promovidos pelo movimento Black Lives Matter causaram pelo menos 25 mortes nos Estados Unidos.

Quando você acredita estar no "grupo certo", e quando é mais leal ao grupo do que a um conjunto de princípios, você seguirá o grupo para qualquer lugar, irá se conformar com qualquer uma de suas regras e crenças, e o defenderá não importa o que ele faça. O grupo será parte integral de sua identidade, e a ideia de se opor a ele será para você algo pior do que uma traição: será uma negação de você mesmo.

Esse grupo pode ser sua religião. Pode ser a esquerda, ou a direita. Pode ser um movimento político - até mesmo aqueles que pretendem falar em nome de todos os indivíduos de uma dada raça, sexo ou orientação sexual. Pode ser uma seita, uma comunidade, uma nação inteira.

bode expiatorio fanatismo ideologico
Protestos em Minneapolis, Estados Unidos (2020).

Tenha em mente que a primeira e principal função de qualquer grande grupo é continuar existindo; todo o resto é secundário, inclusive seus integrantes (todos substituíveis). O coletivo é sempre burro, acéfalo: o coletivo não pensa, e pode ser facilmente manipulado. Todo raciocínio provém da individualidade dos integrantes, mas em meio à massa, a racionalidade se perde, e o que impera é o movimento de manada. Assim como na histeria de uma torcida de futebol, ou no fervor alucinado de um culto religioso, o conjunto das mentes parece articular-se como um organismo à parte, movido por instintos primitivos, e incapaz de coordenar-se de forma racional.

bode expiatorio fanatismo ideologico
As forças primitivas de ódio do ser humano, somadas em uma tribo ou comunidade, manifestam-se como um monstro faminto. Para que ele não destrua a tribo, sacrifícios humanos periódicos são necessários.

Como se sabe, a febre coletiva sempre esteve ligada aos linchamentos e às execuções públicas, muitas vezes sem qualquer julgamento e com base em boatos, difamações ou meras antipatias. A queima de "bruxas" é apenas um dos exemplos mais conhecidos. Essas perseguições e punições são entendidas pela mente tribal como uma forma de justiça. O que é justo ou injusto, porém, é determinado não por uma lógica humanitária de equidade, proporcionalidade e prudência com o entendimento dos fatos, mas pelos instintos animalescos mais sombrios que ainda residem em nós.

E hoje, mesmo aqueles sem fortes convicções políticas tendem a adotar, com facilidade impressionante, visões radicais sobre assuntos sobre os quais nada entendem. Muitos parecem prontos a condenar completos estranhos ao linchamento ou à prisão perpétua com base em um manchete sensacionalista, elaborada cuidadosamente para gerar revolta nos leitores e lucrar com os cliques. Qualquer um parece saber qual deve ser o veredicto, sem conhecimento adequado dos fatos e frequentemente julgando saber mais que os próprios juízes. As motivações são psicologicamente transparentes: o desejo de se vingar de alguém, de fazer alguém pagar por alguma injustiça passada, seja quem for. Nesses casos, os fatos só existem para atrapalhar a gratificação da vingança.

denuncia caluniosa estupro
Com base numa noção tribal de "justiça histórica" (isto é, vingança histórica), tribunais por todo o Ocidente têm considerado que a mera denúncia de mulheres contra homens é uma evidência. No caso acima, diz-se que um pai foi "preso em flagrante", ainda que o crime jamais tenha ocorrido: o flagrante foi baseado na alegação. A filha confessou estar apenas buscando "chamar a atenção do pai". Entre o público, porém, há sempre uma torcida fanática pela punição a qualquer custo. Fontes: G1, JusBrasil.

Costumávamos acreditar que todo cidadão é inocente, até que se prove o contrário. Ir contra essa máxima era uma das características do fascismo: na Itália de Mussolini, a presunção da inocência entrou em declínio e o sistema judiciário passou a punir cidadãos sem provas, com base apenas em acusações, alegando uma necessidade de "defesa social", caso o crime (ainda que inexistente) tivesse suscitado clamor público. Em outras palavras: punia-se os impopulares. Para arruinar a vida de uma pessoa, bastava ir à delegacia e fazer uma acusação "plausível". Hoje, muitos tribunais do Ocidente estão passando a operar dessa maneira, a depender da raça, do sexo ou da religião do acusador e do acusado. E as multidões comemoram os banimentos e castigos, deliciadas pelo sofrimento alheio, como as plateias romanas, que riam dos cristãos desmembrados por leões, ou como os fanáticos islâmicos, que festem o apedrejamento de homossexuais.

bode expiatorio fanatismo
Tribunais raciais: as raças se invertem, as sentenças mudam, mas os tribunais continuam.

E ironicamente, aqueles que apresentam os comportamentos mais intolerantes e de aparência fascista são, atualmente, os que com mais frequência acusam seus oponentes ideológicos de fascismo. Aqueles que destilam mais ódio, animosidades e desunião também têm sido, ironicamente, os que mais acreditam defender a solidariedade, a paz, a fraternidade, a diversidade de pensamento e a tolerância - um caso clássico da projeção freudiana.

Por isso tudo, é altamente recomendável que desconfiemos de nossas motivações, pois há sempre um monstro ancestral em cada um de nós tentando impor seus caprichos sombrios - aquilo que Jung chamou de sombra. E como já observou o psicólogo Jordan Peterson, não há lugar melhor para escondermos nossas pulsões perversas do que atrás de pretensas boas intenções. Lá, muitas vezes nem nós mesmos seremos capazes de enxergá-las.

E você: para quem você direciona seus ódios e frustrações?

bode expiatorio

foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador




SÉRIE NUM FUTURO PRÓXIMO

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST







Merlin Capista de Livros Sobre Merlin - Capista de Livros Como Publicar seu Livro ou E-Book - Merlin Capista Criação de Capas de Livro - Merlin Capista Diagramação de Livro - Merlin Capista Portfólio de Capas de Livro - Merlin Capista Portfólio de Ilustrações e Design - Merlin Capista Orçamento - Merlin Capista de Livros Contato - Merlin capista de Livros