
Em matéria de música, arte e entretenimento, diz-se que tudo é subjetivo. Gosto é gosto e não se discute. O que é bom para um, pode ser ruim para outro. Muita gente defende que não existiria um modo objetivo de avaliar as expressões artísticas. Será mesmo?
Se assim for, seria impossível argumentar que a nona sinfonia de Beethoven, por exemplo, é melhor do que um funk de Anitta. De fato, melhor e pior são rótulos derivados de preferências: cada um pode escolher sua régua para medir qualidade, e nenhuma régua é objetivamente correta. Mas algumas coisas objetivas podem ser avaliadas cientificamente.
Uma delas é a obscenidade do funk — e não apenas as letras, mas os próprios padrões sonoros.
Você dificilmente encontrará estudos científicos utilizando o termo "obscenidade", tampouco pesquisas que lancem um olhar negativo sobre o funk (trata-se de um tópico tabu, politicamente incorreto). Mas sabe-se que a música ativa associações cinestésicas na mente humana — associações estas que não são aleatórias, seguindo um padrão comum entre os humanos. Algumas músicas, como o funk, apresentam uma relação cinestésica com a sexualidade (que, em termos não científicos, seria sua parte "obscena").
Colocando de lado as letras do funk, que obviamente são obscenas, resta o ritmo e o padrão sonoro. O ser humano, assim como outros animais, percebe estímulos sensoriais de forma relacional, conectando impressões sonoras a movimentos do corpo, por exemplo. É por isso que para cada tipo de música há formas de dança mais ou menos apropriadas. Não são associações aleatórias inventadas pela sociedade: os movimentos precisam sincronizar com os sons, e a natureza e a intensidade do movimento são inspiradas nas sensações provocadas pela música.
O tom, o ritmo e a melodia criam essas associações de forma semelhante em quase todos os seres humanos, independentemente da cultura e da época:
- O tango é instintivamente associado à sedução sexual, ao cortejo. A natureza erótica dos movimentos pode ser reconhecida por qualquer pessoa de qualquer cultura.
- O rock pesado, energético, frenético, incita nos ouvintes movimentos de mesma natureza (vigorosos, controladamente agressivos). Sendo uma barulheira infernal, com instrumentos ajustados de propósito para produzir distorções, ele é inevitavelmente associável à rebeldia caótica.
- No hip hop, o padrão repetitivo e insistente, com um acorde de base quase constante, reforça a atitude desafiadora do cantor, com seu tom de voz oscilando entre resignado e aborrecido. Ainda que não entendêssemos as palavras (caso a música fosse cantada em língua desconhecida), identificaríamos sua atitude pela musicalidade.
- Universalmente associado ao uso de cannabis, o reggae reflete um estado de espírito relaxado, às vezes até letárgico (a depender da música). O efeito do reggae é quase hipnótico.
Para todo gênero de música ou timbre de instrumento, há exemplos semelhantes: a malandragem do samba, a altivez de corais religiosos, o ritmo contagiante e primitivo do tambor, o encanto mágico da flauta, a nobreza da música clássica, a fluidez casual do pop, o cavalheirismo das danças de salão, a manha melosa do pagode, as saudades chorosas do sertanejo, a tristeza do blues, a calma melancólica e meditativa do jazz, a festividade contagiante das folk musics, a inocência alegre das músicas infantis — a lista é infindável.
Não é à toa que filmes e séries de televisão escolhem com cuidado sua trilha sonora. Não importa o país ou a língua do espectador, a música instrumental que acompanha uma cena afetará todo o público de maneira semelhante, a depender do gênero, do ritmo, dos instrumentos utilizados e do padrão melódico.
E é por isso que o funk é objetivamente obsceno. Qualquer um que busque sincronizar seu corpo com a musicalidade do funk acabará reproduzindo movimentos sexuais. E como nós fazemos essas associações de forma instintiva, devido à cinestesia, não é necessário que dancemos para perceber em nossa mente a conexão entre o ritmo e seu teor sexual.
Agora, por que dizer obsceno, e não meramente erótico?
O tango, como vimos, é erótico. Outros ritmos também inclinam-se na mesma direção. O que liga o funk à ideia de obscenidade é o modo como o ritmo influencia a dança. No tango, temos um par, um casal; temos um diálogo através da dança, coordenado pelas variações da música, com sua melodia e instrumentos. No funk, a sexualidade é frenética e coletiva. Não se trata de um par, mas de todos com todos, em uma massa amorfa. As batidas da música, além de incitarem associações sexuais, refletem impulsividade, embotamento do raciocínio e repetição indistinta — pois é o que se observa no comportamento dos ouvintes.
Se entendermos a música como uma espécie de indutor hipnótico de comportamentos (e a mera observação de como as pessoas se comportam ouvindo cada tipo de música sugere esta conclusão), o que o funk desperta nos ouvintes é um autoerotismo público em que os filtros de pudor são desativados.
E é interessante que, embora o funk seja relativamente moderno, ele representa um retorno a uma forma de música bastante semelhante, comum em tribos caçadoras-coletoras de várias partes do mundo. Ainda hoje, por exemplo, algumas tribos africanas praticam orgias noturnas ao som de ritmos semelhantes ao funk, com o soar de tambores. Assim como nos bailes funk, trata-se de um ritual reprodutivo que frequentemente leva à gravidez de várias mulheres, mas com incerteza paterna.
Dessa forma, o funk é apenas uma variação contemporânea de certo padrão cultural comum em várias sociedades. Seu caráter obsceno é precisamente sua essência, na medida em que obscenidade é aquilo que é inapropriado para ser visto na vida cotidiana, e que precisa ser isolado do resto da vida social — seja em um motel, seja no próprio baile funk.
Fontes:
ENGLE, Gigi. The science behind music and sex. The Body, 6 abr. 2022. Disponível em: https://www.thebody.com/article/science-behind-music-sex JANATA, Petr; TOMIC, Stefan T.; HABERMAN, Jason M. Sensorimotor coupling in music and the psychology of the groove. Journal of Experimental Psychology: General, v. 141, n. 1, n. 54–75, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1037/a0024208 KIRBY, E. T. Ritual sex: anarchic and absolute. The Drama Review: TDR, v. 25, n. 1, Sex and Performance Issue, p. 3-8, mar. 1981. Disponível em: https://doi.org/10.2307/1145337 LEVITIN, Daniel J.; GRAHN, Jessica A.; LONDON, Justin. The psychology of music: rhythm and movement. Annual Review of Psychology, v. 69, p. 51-75, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1146/annurev-psych-122216-011740