Complexo de Édipo nos Contos de Fadas: O Cavaleiro Heroico e a Donzela em Apuros | Fantástica Cultural

Artigo Complexo de Édipo nos Contos de Fadas: O Cavaleiro Heroico e a Donzela em Apuros

Complexo de Édipo nos Contos de Fadas: O Cavaleiro Heroico e a Donzela em Apuros

Autores Selecionados ⋅ 28 set. 2022
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Os problemas edípicos de uma menina são diferentes dos do menino. Os contos de fadas os ajudam a enfrentar essas manifestações diversas do Complexo de Édipo.

Trecho de A psicanálise dos contos de fadas,
de Bruno Bettelheim.

Branca de Neve e Bruxa - Arte de Gustaf Tenggren
Branca de Neve e Bruxa - Arte de Gustaf Tenggren

Nas violentas convulsões do conflito edípico, um menino se ressente do pai estar no seu caminho de receber a atenção exclusiva da mãe. O menino quer que a mãe o admire como o grande herói de tudo; isto significa que, de alguma forma, deve tirar o pai do meio do caminho. Esta ideia, todavia, gera ansiedade na criança, porque sem o pai para proteger e cuidar dele, o que aconteceria à família? E ainda, o que aconteceria se o pai descobrisse que o menino quer tirá-lo do caminho... ele não se vingaria da maneira mais terrível?

Podemos dizer a um menino várias vezes que algum dia ele crescerá, se casará, e será como seu pai — sem nenhuma utilidade. Este conselho realista alivia as pressões que a criança sente agora, de imediato. Mas o conto de fadas diz à criança como ela pode viver com seus conflitos; sugere fantasias que ela nunca poderia inventar por sua própria conta.

O conto de fadas, por exemplo, apresenta a estória do menino que não é notado, que parte para o mundo e tem grande sucesso na vida. Os problemas edípicos de uma menina são diferentes dos do menino, e por conseguinte as estórias de fadas que ajudam-na a enfrentar sua situação edípica são de caráter diferente. Os detalhes podem diferir, mas a trama básica é sempre a mesma: o herói improvável se revela matando dragões, resolvendo charadas e vivendo através de sua esperteza e bondade até que finalmente liberta a linda princesa, casa-se com ela e vive feliz para sempre.

Um menino sempre se vê neste papel principal. A estória implica que: não é o pai aquele cujo ciúme impede você de ter mamãe com exclusividade, é um dragão malvado, e o que você na verdade deve ter em mente é matar o dragão.

Além disso, a estória dá um cunho de veracidade ao sentimento do menino de que a mais desejável das mulheres está presa por uma figura malvada, enquanto implica que não é a mãe que a criança deseja para ela, mas uma mulher maravilhosa e magnífica que ainda não encontrou, mas de certo o fará.

A estória conta ainda mais sobre o que o menino deseja ouvir e acreditar; que não é por sua livre e espontânea vontade que esta mulher maravilhosa (isto é, mamãe) mora com esta figura malvada. Ao contrário, se ela pudesse, preferiria estar com um jovem herói (como a criança). O matador do dragão tem sempre que ser jovem como a criança, e inocente. A inocência do herói com quem a criança se identifica demonstra, por procuração, a inocência da criança, de modo que, em vez de se sentir culpada por estas fantasias, a criança pode sentir ela mesma como o herói orgulhoso.

Cavaleiro - Arte de John Bauer
Cavaleiro - Arte de John Bauer

É característico destas estórias que uma vez morto o dragão, ou qualquer feito que liberte a linda princesa de seu cativeiro — e unindo-se o herói à sua amada, não tenhamos mais nenhum detalhe sobre a vida posterior deles, além de saber que viveram "felizes para sempre". Se mencionam filhos, normalmente trata-se de uma interpolação posterior feita por alguém que achou que a estória se tornaria mais satisfatória ou realista se oferecesse tal informação. Mas a introdução de filhos no final da estória mostra pouca compreensão das fantasias de um menininho sobre uma existência bem-aventurada.

Uma criança não pode e não quer imaginar o que realmente implica ser marido e pai. Isto implicaria, por exemplo, ter que se separar da mãe na maior parte do dia para trabalhar — enquanto a fantasia edípica é uma situação onde o menino e a mãe nunca se separam, por um momento sequer. O menino não quer certamente que a mãe esteja atarefada com os cuidados da casa, ou cuidando de outras crianças. Não quer ter relações sexuais com ela também, porque esta ainda é uma Através dos contos de fadas os pais podem reunir-se aos filhos em todas as viagens de fantasia, ao mesmo tempo que mantêm, na vida real, a importante função de executar as tarefas paternas. área cheia de conflitos para ele, se é que tem alguma consciência disso. Como na maioria dos contos de fadas, o ideal do menino é apenas que ele e sua princesa (mamãe), com todas as suas necessidades e desejos satisfeitos, vivam juntos um para o outro e para sempre.

Os problemas edípicos de uma menina são diferentes dos do menino, e por conseguinte as estórias de fadas que ajudam-na a enfrentar sua situação edípica são de caráter diferente. O que impede a existência edípica bem-aventurada da menina com seu pai é uma mulher mais velha e de más intenções (isto é, mamãe). Mas como a menina deseja muito continuar gozando dos cuidados amorosos da mãe, também existe uma mulher benevolente no passado ou na lembrança de contos de fadas, cuja imagem feliz é mantida intacta, embora tenha-se tornado inoperante. A menina deseja ver-se como uma jovem linda — uma princesa ou semelhante — que está presa pela figura feminina malvada e egoísta, e por conseguinte sem acesso ao homem amante. O pai real da princesa cativa é retratado como benevolente, mais incapaz de vir em socorro de sua filha adorável. Em Rapunzel é uma promessa que o bloqueia. Em Cinderela e Branca de Neve ele parece incapaz de se defrontar com a madrasta todo-poderosa.

Herói e Dragão-Serpente - Arte de John Bauer
Herói e Dragão-Serpente - Arte de John Bauer

O menino edípico, que se sente ameaçado por seu pai devido ao desejo de substituí-lo nas atenções da mãe, projeta o pai no papel de monstro ameaçador. Isto parece também provar ao menino que o pai é um rival perigoso, pois, caso contrário, por que esta figura paterna seria tão ameaçadora? Como a mulher desejada está presa pelo velho dragão, o menino pode acreditar que só a força bruta impede esta moça adorável (mamãe) de se reunir a ele, o jovem herói preferido.

Nas estórias de fadas que ajudam a menina edípica a compreender seus sentimentos e satisfações delegadas, são os ciúmes intensos da madrasta (mãe) ou da feiticeira que impedem o amante de encontrar a princesa. Este ciúme demonstra que a mulher mais velha sabe que a moça é a preferida, mais amável, e mais merecedora de ser amada.

Arte de John Bauer
Arte de John Bauer

Enquanto que o menino edípico não deseja qualquer criança que interfira no completo envolvimento da mãe com ele, as coisas são diferentes para a menina edípica. Ela realmente deseja dar a seu pai o presente amoroso de ser mãe de seus filhos. É difícil determinar se isto é uma expressão de sua necessidade de competir com a mãe a este respeito, ou uma leve antecipação da sua futura maternidade. Este desejo de dar um filho ao pai não significa ter relações sexuais com ele — a menina, como o menino, não pensa nestes termos concretos. Ela sabe que os filhos são o que liga o homem do modo mais intenso à mulher.

Esta é a razão pela qual, nas estórias que lidam simbolicamente com os desejos edípicos, com os problemas e esforços de uma menina, os filhos são mencionados ocasionalmente como parte do final feliz.

Na versão de Rapunzel dos Irmãos Grimm, contam-nos que o príncipe em suas andanças "finalmente chega ao deserto onde Rapunzel, com os dois filhos que tivera, um menino e uma menina, vive em desgraça", embora antes não fosse mencionada nenhuma criança. Quando ela abraça o príncipe, duas lágrimas caem de seus olhos e molham os do príncipe (que tinham sido vazados) e curam sua cegueira; e "ele a leva para seu reino onde é recebido com alegria, e onde viveram felizes por muito tempo".

Uma vez reunidos, nada mais é dito sobre as crianças. São apenas um símbolo na estória do elo entre Rapunzel e o príncipe durante a separação deles. Como o conto não narra o casamento dos dois, e como não há nenhuma outra sugestão de qualquer forma de relação sexual, esta menção de filhos nos contos de fadas sustenta a ideia de que os filhos podem ser obtidos sem sexo, apenas como resultado do amor.

João e Maria - Arte de Arthur Rackham
João e Maria - Arte de Arthur Rackham

No curso usual da vida familiar, o pai está frequentemente fora de casa, enquanto a mãe, tendo parido e criado o filho, continua fortemente envolvida em todos os cuidados da criança. Como resultado, um menino pode facilmente fazer de conta que o pai não tem toda aquela importância na vida dele. Uma menina não pode conceber tão prontamente a ideia de dispensar os cuidados da mãe. Esta é a razão pela qual a substituição de um pai originalmente "bom" por um padrasto é tão rara quanto é frequente a presença da madrasta malvada. Como os pais tipicamente dão muito menos atenção à criança, não ocorre um desapontamento radical quando o pai começa a ficar no meio do caminho da criança, ou a solicitar coisas dela. Por conseguinte, o pai que bloqueia os desejos edípicos do menino não é visto como uma figura má dentro de casa, como ocorre frequentemente com a mãe. Em vez disso, o menino edípico projeta suas frustrações e ansiedades num gigante, monstro, ou dragão.

Na fantasia edípica da menina, a mãe é dividida em duas figuras: a mãe boa, maravilhosa, pré-edípica e a madrasta malvada edípica. (Algumas vezes existem madrastas malvadas em estórias de fadas com meninos, como em João e Maria, mas estes contos lidam com problemas diferentes dos edípicos.) A boa mãe, prossegue a fantasia, nunca teria ciúmes de sua filha ou impediria o príncipe (o pai) e a moça de viverem juntos e felizes. Assim, para a menina edípica, a crença e confiança na bondade da mãe pré-edípica, e uma profunda lealdade para com ela, tendem a reduzir a culpa em relação àquilo que a menina deseja que aconteça à (mãe) madrasta que está no meio do seu caminho.

Cinderela - Arte de Retta Scott
Cinderela - Arte de Retta Scott

Assim, tanto as meninas como os meninos edípicos, graças ao conto de fadas, podem ter o melhor dos dois mundos: podem gozar plenamente as satisfações edípicas na fantasia e na vida real, manter boas relações com os dois pais.

Para o menino edípico, se a mãe o decepciona, existe a princesa do conto de fadas no fundo de sua mente — aquela mulher maravilhosa do futuro quecompensará todas as labutas presentes, e cuja lembrança torna mais fácil suportar estes esforços. Se o pai dá menos atenção à filha do que ela deseja, ela pode suportar esta adversidade porque chegará um príncipe a quem ela preferirá mais do que a todos os outros rivais.

Como tudo ocorre numa terra-do-nunca, a criança não precisa se sentir culpada ou ansiosa de projetar o pai no papel de um dragão ou de um gigante malvado, ou a mãe no papel de uma madrasta ou bruxa miserável. A menininha pode amar seu pai real muito bem, porque seu ressentimento quanto à falha dele em preferir sua mãe e não a ela é explicada pela infeliz ineficácia dele como acontece com os pais nos contos de fadas, pela qual ninguém pode culpá-lo, já que é devida a poderes superiores; além do mais, isto não a impedirá de conseguir seu príncipe. A menina pode amar ainda mais sua mãe porque deposita toda sua raiva na mãe-competidora, que recebe o que merece — como a madrasta em Branca de Neve que é forçada a calçar "sapatos de ferro em brasa e dançar até cair morta". E Branca de Neve — e com ela a menina — não precisa se sentir culpada porque seu amor pela mãe verdadeira (que precedeu a madrasta) nunca parou de existir. O menino pode amar seu pai real ainda mais depois de depositar a raiva que sente por ele numa fantasia de destruir o dragão ou o gigante malvado.

Branca de Neve e os Sete Anões - Arte de Felicitas Kuhn
Branca de Neve e os Sete Anões - Arte de Felicitas Kuhn

Estas fantasias — que seriam difíceis para uma criança inventar de modo tão complexo e satisfatório por sua própria conta — ajudam- na muito a vencer sua angústia edípica.

E estória de fadas tem outros valores inigualáveis para ajudar a criança a enfrentar conflitos edípicos. As mães não podem aceitar os desejos dos menininhos de acabar com papai e casar-se com mamãe; mas a mãe pode participar com prazer da situação onde seu filho imagina-se o matador de dragões que obtém a linda princesa. A mãe também pode encorajar integralmente as fantasias da filha acerca do lindo príncipe com o qual se casará, e assim ajudá-la a crer numa solução feliz apesar de sua decepção atual.

Assim, em vez de perder mamãe devido à ligação edípica com papai, a filha percebe que mamãe não só aprova estes desejos disfarçados, mas até deseja que se realizem. Através dos contos de fadas os pais podem reunir-se aos filhos em todas as viagens de fantasia, ao mesmo tempo que mantêm, na vida real, a importante função de executar as tarefas paternas.

Assim, a criança obtém o melhor dos dois mundos, que é o que necessita para se transformar num adulto seguro. Em fantasia, a menina pode vencer a (mãe) madrasta, cujos esforços para impedir sua felicidade com o príncipe fracassam; o menino pode matar o monstro e obter o que deseja numa terra distante. Ao mesmo tempo, tanto o menino quanto a menina podem manter em casa o pai real como protetor e a mãe real que fornece todos os cuidados e satisfações de que a criança necessita. Como fica claro todo o tempo que a matança do dragão e o casamento com a princesa prisioneira, ou o encontro com o príncipe encantado e a punição da bruxa malvada ocorrem em tempos e países longínquos, a criança normal nunca os mistura com a realidade.

Cinderela - Arte de Lynn Bywaters
Cinderela - Arte de Lynn Bywaters

As estórias de conflitos edípicos são típicas da maioria dos contos de fadas que estendem os interesses da criança além da família próxima. Para dar seus primeiros passos na direção de uma individualidade madura, a criança deve começar a encarar o mundo mais amplo. Se não recebe apoio dos pais na sua pesquisa real e imaginária do mundo exterior à sua casa, corre o risco do desenvolvimento de sua personalidade se empobrecer.

Não é prudente pressionar a criança com muitas palavras a alargar seus horizontes, ou informá-la especificamente sobre a extensão em que deve partir nas suas explorações do mundo, ou sobre o modo de organizar os sentimentos acerca dos pais. Se o pai encoraja a criança a "amadurecer", a locomover-se psicologicamente ou geograficamente, a criança o interpreta como "eles querem se livrar de mim".O resultado é diretamente oposto ao que se pretende. Pois a criança, então, se sente indesejada e sem importância, e estes sentimentos são prejudiciais ao desenvolvimento de sua capacidade de lidar com o mundo mais amplo.

A tarefa de aprendizado da criança é precisamente a de tomar decisões acerca de mover-se por conta própria, no tempo devido, e em direção às áreas de vida que ela mesma seleciona. O conto de fadas ajuda neste processo porque diz tudo de forma implícita e simbólica: quais devem ser as tarefas da própria idade; como se pode lidar com os sentimentos ambivalentes em relação a um dos pais como se pode dominar este caldeirão de emoções. Também adverte a criança sobre algumas armadilhas que ela deve esperar e talvez evitar, sempre prometendo um resultado favorável.

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Fonte:

Trecho de: BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz & Terra, 2009.

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