
Desde os primórdios do cristianismo, milhares de teólogos, fiéis e filósofos de boteco têm discutido a questão mais básica da fé cristã: o que é, afinal, ser cristão? E embora muita gente acredite saber a resposta na ponta da língua, o fato é que a maior parte das pessoas não concorda, nem de longe, com as definições dos outros.
Isso importa? Para muitos religiosos, parece que não! E isso é muito bizarro: se seguir as instruções bíblicas de forma equivocada levaria o fiel à condenação eterna no inferno, esperaríamos ver os religiosos extremamente preocupados com a interpretação correta da Bíblia. Uma interpretação errada, e eis que o cidadão sofrerá uma danação infernal. Mas parece que quase ninguém liga.
A verdade é que cada um tem sua crença pessoal. Cada um acha um jeito de justificar sua própria interpretação, e ajustá-la à sua vida. Assim, quase todo mundo acha que vai para o Céu. É como se o que importasse fosse apenas a intenção de ser cristão.
Ainda assim, existe uma espécie de catálogo de expectativas que a sociedade projeta nos cristãos. Muitas delas derivam de milênios de práticas incentivadas pela Igreja, e outras originam-se diretamente de exemplos bíblicos, do Antigo Testamento ou da própria vida de Jesus. O problema é que muitas destas expectativas morais, enquadradas em máximas, mandamentos, provérbios, não se sustentam bem diante do que sabemos hoje sobre o mundo, sobre a psicologia humana, e sobre como tornar nossas vidas melhores.
Para exemplificar, vejamos esta curiosa crítica postada no Twitter, não muito diferente do que ateístas geralmente argumentam contra cristãos:

Vi este post na internet, e nos comentários, notei que grande parte dos cristãos aplaudia a crítica desta conta no Twitter (O Martelo de Nietzsche), um ativista ateu. Muitas de suas colocações são válidas, outras tantas nem tanto. Mas fiquei pensando: é isto o cristianismo?
Eis o que ele propõe como sendo a moralidade cristã:
- Ser paciente
- Ser longânimo (corajoso, generoso; bondoso; mas também resignado, conformado)
- Amar a todos sem discriminação
- Amar sobretudo quem te odeia
- Não se apegar a bens materiais
- Compartilhar seu dinheiro com quem precisa
- Largar a vaidade
- Dar a cara a tapa
- Não revidar a uma ofensa
São estas características positivas para o cristão, ou para o mundo?
Meu argumento é que a maior parte delas é prejudicial para o mundo e para o cristão. E não é difícil de entender. Vamos a elas, martelando (com cuidado) um a um:
1. Ser paciente

Sim, esta é uma virtude de poder imensurável. É apenas importante ter em mente que, quando você é paciente com algo que nunca virá, está perdendo seu tempo e sua vida.
Ser paciente é esperar. É ser passivo, e aguardar que o mundo lhe entregue algo, ao invés de ir atrás do que deseja.
Use a paciência com sabedoria. Algumas coisas precisam ser deixadas para trás. Um aumento de salário, por exemplo, talvez nunca chegue. Paciência nem sempre é a solução. E apesar de eu não ser religioso, vou me atrever a citar a Bíblia para reforçar meu ponto: "Portanto, estejam com a mente preparada prontos para agir".
2. Ser longânimo (corajoso, generoso; bondoso; resignado, conformado)

A primeira parte da definição de "longâmigo" é excelente exemplo das virtudes aristotélicas: seja corajoso, generoso, bondoso — sem a menor sombra de dúvidas, isto o tornará um bom cristão ou, se for de outra religião ou fé, o tornará uma pessoa de caráter.
Mas outros valores pregados pelos cristãos são a resignação e o conformismo. E este tipo de atitude faz sentido se você espera pela recompensa na vida após a morte: a justiça divina que chegará no Céu, caso você creia nisso. Enquanto isso, no nosso mundo, resignar-se perante injustiças e ser conformista não apenas prejudica a sua vida, mas a de sua família, amigos e comunidade.
Jesus Cristo por acaso foi conformista ou resignado? Muito pelo contrário. A exemplo de Jesus (e dos filósofos estoicos), as únicas coisas a que nos conformar são aquelas que não podemos mudar. No caso de Cristo, seria a vontade de Deus. De resto, em nada ele se parecia com um homem conformado.
3. Amar a todos sem discriminação

Este é um dos mantras de muitas religiões. E é absurdo.
Amor verdadeiro não se pode forçar. Amor verdadeiro não se cria por persuasão, por convencimento. Não se pode amar quem não conhecemos, por decreto religioso. Se agimos como se amássemos a divindade ou o próximo, isto não seria amor, é um teatro de virtude.
Nem mesmo Deus amou a todos da mesma forma, se formos nos fiar nos textos do Antigo Testamento: nele, o filho mais amado de Deus foi Davi, e outros tantos personagens bíblicos foram no máximo tolerados. As expressões de amor divino variam drasticamente ao longo dos testamentos, dependendo do personagem. Para não mencionar que ele tinha um povo escolhido, os hebreus. Posteriormente, é claro, seu filho mais amado seria Jesus. Percebe a inconsistência?
Reserve o amor para aqueles próximos de você, aqueles a quem você arriscaria a vida para salvar. Este é o amor verdade. Aos demais humanos, trate-os com ética, respeito e dignidade. Isto bastará.
4. Amar sobretudo quem te odeia

E aqui, outra pérola da filosofia cristã. Assim como a anterior, não se trata de beneficiar o outro, o amado ou odiado. O princípio existe para beneficiar aquele que perdoa, sendo, portanto, um ato egoísta.
Ao perdoar o malfeitor, o cristão pode sentir-se moralmente superior. É uma forma de lidar com a agressão que sofreu, sem precisar valer-se de violência. Ainda assim, do ponto de vista psicológico, fica evidente a manipulação mental feita para elevar a vítima à santidade de perdoador, como forma de dar a "volta por cima".
Agora, é crucial não nutrir ódios (algo também alinhado à filosofia estoica). O ódio corrói a psique, adoece a mente, torna-a obcecada com vingança, irritadiça, neurótica, propensa a reações violentas e a culpabilizar inocentes. Portanto, não nutra ódio.
Mas perdoar quem lhe fez mal a troco de nada é uma forma de incentivar a repetição dos abusos. O abusador irá cometer mais ofensas, ou até mesmo crimes, contra você e outras pessoas inocentes, porque entende que pode se livrar facilmente.
Nas palavras de Edmund Burke, "para que o mal prevaleça, basta que os bons não façam nada" (parafraseando). Não é o cristão a mão de Deus na Terra? De que lhe vale o perdão incondicional? O cristão pode achar que, ao aceitar as injustiças e "amar seu vitimador", irá ter recompensa no Céu. Na verdade, estará ajudando a Terra a se tornar um inferno infestado de abusadores, os mesmos que conviverão com as próximas gerações (inclusive seus próprios filhos).
5. Não se apegar a bens materiais

Sim, o materialismo é ruim. Todo mundo concorda.
Mas o que é materialismo? É ter duas televisões? É colecionar sapatos? Devo citar as riquezas bíblicas do Rei Salomão?
Chamamos de materialismo a relação doentia com bens materiais, situação em que o acúmulo de objetos, casas, etc., torna-se uma compulsão, uma desordem psicológica, muitas vezes no intuito de compensar algum vazio existencial ou uma rotina miserável.
Agora, por que não se pode ter apego às coisas materiais, de uma forma saudável? O cristão poderia argumentar que tudo o que temos irá perecer com nossa morte. Mas o próprio cristão não valoriza a beleza de uma catedral, a estátua de um santo, ou tantos outros objetos a que atribui valor sentimental? E isso sem falarmos nos milênios em que a Igreja colecionou relíquias santas, como a unha do pé deste santo, ou o fio do cabelo daquela santa (ou o conhecido santo graal, ou o santo sudário), que na prática não passam de matéria (já que a santidade seria espiritual).
Somos seres materiais. Somos matéria, enquanto vivos, e tudo com o que interagimos é matéria. Dependemos de coisas físicas para viver bem, para sermos felizes. Por que seria errado, ou fútil, nós nos apegarmos à nossa casa, que nos abriga, como gesto de gratidão pelo que conquistamos? Por que seria errado nos apegarmos a livros, à arte, a objetos da nossa infância, a itens que nos lembram pessoas falecidas?
O apego, na forma de amor ágape, pode se estender a tudo, inclusive a objetos. Ele caracteriza-se por uma conexão emocional com tudo o que há na natureza e na humanidade. Rejeitar este apego ao material, francamente, constitui-se como uma distorção na melhor natureza humana.
6. Compartilhar seu dinheiro com quem precisa

A caridade é, sem dúvida, uma das ações sociais mais associadas ao cristianismo, tendo sido praticada desde seus primórdios. Durante a Idade Média, criaram-se sob a égide da Igreja incontáveis hospitais, paradouros para viajantes, escolas e centros de distribuição de comida para famintos. Assim, compartilhar sempre foi parte da doutrina cristã.
Mas aqui é preciso fazer uma distinção entre quem precisa e quem merece. Seria esta uma distinção cruel? Se for, seria justo classificarmos Jesus Cristo como cruel, pois mesmo ele decidia quem merecia ou não sua ajuda e seus milagres, com base no caráter do pedinte.
E também é na Bíblia que encontramos o ensinamento tão conhecido do ensinar a pescar àquele que pode pescar, em vez de dar-lhe o peixe do dia e permitir-lhe morrer de fome nos dias seguintes. O narcisista que só se importa em exibir virtude deseja mostrar que ajudou, sem se importar se a ajuda é duradoura e transformadora. Este, é claro, não é um verdadeiro cristão.
Então, tenha em mente que grande parte das pessoas reage aos incentivos que recebem de forma imoral. A quem lhes dá pão, talvez venha sempre a pedir mais, em vez de trabalhar para criar seu próprio sustento. E se você é cristão e deseja salvar esta alma, entenda que estará fazendo o contrário: estará incentivando um charlatão a viver como matreiro às custas do trabalho alheio. Se existe um guardião nas portas do Céu, ele não deixará este seu amigo pedinte passar.
Em suma, a piedade é facilmente explorada por indivíduos de péssimo caráter. E deixar-se explorar não torna ninguém mais virtuoso — pelo contrário, é um ato que perpetua a desonestidade no mundo, e diminui o número de pessoas trabalhando por um mundo melhor.
7. Largar a vaidade

Sejamos francos: este conselho é impossível de seguir.
Existe um espectro em relação à vaidade: de um extremo, temos o vaidoso narcisista, como a Rainha Má da Branca de Neve ("há alguém mais bela do que eu?"), e do outro temos o indivíduo que odeia a si mesmo, que se considera um lixo imprestável, como Hamlet, que só via defeitos em si mesmo.
Obviamente, o saudável encontra-se no meio-termo.
Hoje em dia, fala-se muito em autoestima, amor-próprio, etc. Será que tudo isso é anticristão?
É verdade que, muitas vezes, essas tendências exageram no otimismo, glorificando coisas banais e alimentando o narcisismo, o egocentrismo e o solipsismo de pessoas de caráter duvidoso. Por exemplo: Uma esposa fútil, egoísta e briguenta pode se sentir empoderada ao assistir vídeos de amor-próprio, participar de grupos de afirmação feminina, etc. Isso não a tornará uma pessoa melhor, mas nutrirá seu desejo de se sentir uma pessoa boa (através de bajulação barata).
Ao mesmo tempo, temos pessoas cujo trabalho, esforço e gestos de carinho são diariamente desvalorizados. Muito aquém da vaidade, estas pessoas sentem-se inferiores, desprezadas, inúteis, mal-amadas, pelos sinais que os outros indivíduos lhes dão: no trabalho, no casamento, etc. Uma esposa que se esforça para criar os filhos da melhor maneira possível, manter a casa brilhando, e ainda trabalha fora, mas tem seus feitos ignorados por um marido apático que a desvaloriza — isto é terrível.
A vaidade, assim, existe de forma saudável em um nível intermediário, em que a pessoa aprecia o que tem, orgulha-se de seus feitos, de suas conquistas, dos familiares.
E não há nada de errado em vaidade física, na medida certa: todos envelheceremos e perderemos nossa beleza. Os casais se formam justamente na apreciação destas características, pelo que seria absurdo ignorá-las, ou demonizá-las. Cultivar a beleza, o apuro dos gestos e da postura, o bem vestir, o bem falar, tudo isso representa o respeito que temos pelo corpo que possuímos (e se você é cristão, não lhe deve escapar que este corpo foi dado por Deus para que você cuidasse dele).
Sim, o mais importante é a parte interna. Mas não descuide da parte externa, e sinta-se livre para amá-la e cultivá-la. Para um cristão, ela é a obra de Deus em sua perfeição. Trate-a com a devida reverência.
8. Dar a cara a tapa

Segundo diversos dicionários de expressões, alguém que "dá a cara a tapa" é alguém que não tem medo das consequências de suas atitudes, que está pronto a enfrentar algo.
Bem, sabemos que o corajoso não é aquele que não tem medo, e sim o que enfrenta seus medos, apesar deles. Não ter medo é uma anomalia psicológica, principalmente diante de eventos que possam trazer consequências negativas. Então a definição está um pouco incorreta. Vamos corrigi-la:
Dar a cara a tapa é não tentar fugir das consequências de suas próprias ações.
E esta, sim, é um atitude nobre, recomendável como regra para a vida. Cometeu um erro? Peça desculpas e repare o dano. É um filosofia moral diretamente relacionada com a honestidade.
Porém... nem todo juiz será justo. Dar a cara a tapa e se assumir homossexual em um país como Uganda poderá levá-lo à pena de morte. Vale a pena? Quem sai ganhando com tal martírio?
Ocorre que as consequências de nossas ações nem sempre são justas, e nem sempre faz sentido aceitar estas consequências. Às vezes, dizer a verdade pode levá-lo à cadeia. Já é uma realidade em vários países, devido às leis de censura à fala de cidadãos, sob desculpas como a do "discurso de ódio" ou de "desinformação perigosa" (subterfúgios comuns a todo regime ditatorial, agora utilizados em democracias). Vale a pena ser mártir? Vale a pena dizer a verdade e ser punido, e consequentemente ser afastado de sua família, e às vezes ter sua reputação reunida?
Em outras épocas, dar a cara a tapa levaria o indivíduo a ser queimado sob acusações falsas se bruxaria. Hoje, dependendo de sua filiação política ou religiosa, pode perder emprego, arruinar seu círculo social, sofrer bullying e perder oportunidades em universidades, até ser obrigado a largar o curso devido ao boicote de colegas e professores.
A conclusão é que dar a cara a tapa é algo perigoso, e que cada um deve decidir por si, consciente de que seus juízes (os que decidirão as consequências, punições, etc.) poderão ser "reencarnações de Pilatos". Como diz o ditado: Escolha suas batalhas. Nem todas valem a pena.
9. Não revidar a uma ofensa
Há uma expressão em inglês que muito ajudaria no contexto brasileiro:
Sticks and stones may break my bones, but words can never hurt me.
Ou seja: você pode ser ferido por pedras e sarrafos, mas palavras nunca poderão machucá-lo. Isso porque, em inglês, a expressão ofender-se é entendida como algo que se recebe por escolha: alguém decide entender algo como ofensa (takes offense), pois está sob sua responsabilidade decidir se irá se sentir ofendido ou não.
Esta, mais uma vez, é uma postura dos estoicos. E uma das mais empoderantes. Se você é quem decide se irá se ofender ou não, poderá se manter em pé e firme diante de um milhão de indivíduos que o odeiam e que o ofendem das piores formas possíveis — e você ficará tranquilo, sereno e em paz, pois a opinião da multidão é o mesmo que nada para você.
Em suma: é você que dá poder às ofensas alheias. Se elas o irritam, você concedeu poder ao ofensor. Se consegue se manter em paz (o que só você mesmo pode fazer), você retira todo o poder do adversário. Você vence.

Mas isso não significa que nunca devemos revidar. A violência é sempre o último recurso, mas há infinitas outras formas de revide. Lembre-se que as pessoas respondem aos incentivos que você lhes dá: se você permite que as pessoas o ofendam, elas poderão abusar mais e mais. É justamente assim que funciona o bullying: o agressor tenta uma gracinha, e se o alvo não reage, o bully irá abusar mais e mais, até que a situação fuja de controle (às vezes levando à depressão e ao suicídio); se o alvo do bullying reagir à altura da primeira vez, o bully ganhará respeito (e temor) pelo outro, e controlará suas maneiras.
É justo? Não parece. Mas é como o mundo funciona. Não é dado ao homem mudar o universo, apenas decidir a maneira mais sábia e produtiva de navegar por ele. E aceitar abuso de bullies não é uma delas.
Então esteja pronto para confrontar, com palavras, atos não violentos, sanções ou recursos legais, o bully, o assediador, o criador de intrigas, o manipulador, o espancador, o difamador, o ladrão, o egoísta, o explorador, etc.
Entenda o revide como uma forma de justiça: se é justo que alguém seja preso por atos ruins, em nível extracriminal, também é justo que, socialmente, apliquemos sanções aos transgressores, para desincentivar comportamentos nocivos. Do contrário, você estará permitindo a proliferação do mau-caratismo no mundo, o que piorará a vida de todos, em especial a dos mais justos.
10. Não escute conselhos de quem não os segue

Por fim, note que toda esta lista partiu de um post da conta O Martelo de Nietzsche no Twitter. O autor é um ateu, e faço questão de salientar que isso não invalida nenhum de seus pontos. A verdade é a verdade, independentemente de quem a diga. Mas outro detalhe talvez invalide a pertinência de sua fala: a hipocrisia.
E aqui não há muito o que dizer: não exija dos outros aquilo que você não cumpre você mesmo. Se você não é cristão, e percebe que muitos cristãos também não seguem à risca o cristianismo, sinta-se à vontade para apontar este fato. Mas não cobre nada deles que você mesmo não pratique.
De fato, não tenho dúvida de que a maior parte das pessoas que se dizem cristãs não chega nem perto de atingir o ideal da doutrina cristã, muito menos a do próprio Cristo. Mas entre ateus, a situação não é muito diferente. Afinal, humanos são falhos, com ou sem religião.
Só não transformemos isso — a religião — em outra desculpa para nos dividirmos e nos digladiarmos, no pior modelo de cristão.
