Matéria original de Eternalised
Todos nós carregamos uma sombra, e quanto menos ela está incorporada à vida consciente do indivíduo, mais densa e escura ela é. Se temos consciência de um defeito, sempre temos a chance de corrigi-lo. Mas se ele for reprimido e isolado da consciência, nunca será corrigido e poderá explodir repentinamente em um momento de descuido. De forma geral, irá se formar um obstáculo inconsciente, frustrando nossas intenções mais bem-intencionadas.
— Carl Jung, Psicologia e Religião Ocidental e Oriental

Carl Jung fala sobre dois tipos de sombras: a sombra pessoal (o lado obscuro desconhecido de nossa personalidade) e a sombra coletiva (o lado obscuro desconhecido da sociedade).
Segundo Jung, a sombra pessoal é aquilo que uma pessoa não deseja ser.
A sombra representa atributos e qualidades desconhecidos ou pouco conhecidos do ego. É a soma de todas aquelas qualidades desagradáveis que gostamos de esconder de nós mesmos. Ela contém imperfeições que todos nós possuímos, mas preferimos ignorar. Estas imperfeições nos parecem patéticas, socialmente inaceitáveis ou até malévolas.
É quando as pessoas estão tomadas pela ansiedade ou por outras emoções fortes, ou sob a influência do álcool, etc., que a sombra se torna mais visível. Pode-se repentinamente deixar escapar um comentário hostil durante uma conversa amigável. Quando não queremos assimilar o que desprezamos, tendemos a projetar sobre os outros.

É possível que alguém conheça sua própria sombra e esteja parcialmente consciente dela, isto é, sob o controle do ego. Muitas pessoas, no entanto, recusam-se a reconhecer sua sombra completamente, de modo que o ego nem mesmo percebe as ações da sombra e, portanto, não tem possibilidade de comandá-la. Nessas condições, a sombra é autônoma e pode se expressar em humores inexplicáveis, irritabilidade e crueldade.
Ao longo de sua escrita, Jung refere-se à importância de nos conscientizarmos de nossa sombra na psicoterapia, compreendendo suas projeções em nossa vida. Embora a sombra seja geralmente percebida como negativa, ela também pode ser positiva. Na verdade, explorar nossa sombra nos dá acesso a muitas qualidades positivas.
[A sombra] exibe uma série de boas qualidades, como instintos normais, reações apropriadas, insights realistas, impulsos criativos, etc.
— Carl Jung, Arquétipos e o Inconsciente Coletivo
Uma das colaboradoras mais próximas de Jung, Marie-Louise von Franz, escreve:
A sombra nem sempre é necessariamente um oponente. Na verdade, ele é exatamente como qualquer ser humano com quem se deve conviver, ora cedendo, ora resistindo, ora dando amor — seja qual for a situação. A sombra torna-se hostil apenas quando é ignorada ou mal compreendida.
— Marie-Louise von Franz, O Homem e Seus Símbolos
A sombra contém todos os tipos de qualidades, forças e potenciais que, se permanecerem inexplorados, levam-nos a um estado de empobrecimento de nossa personalidade, criando empecilhos inconscientes que inibem o crescimento e a incorporação dessas boas qualidades que estão adormecidas em nossa psique.
Por exemplo, uma pessoa pode acreditar que ser assertivo, decidido, confiante é o mesmo que ser rude ou agressivo, perdendo A coragem com que suportamos nossa escuridão livra as demais pessoas de carregá-la por nós. assim a autoconfiança e a capacidade de falar por si mesmo de forma honesta e respeitosa. Isso, por sua vez, pode levá-lo a uma menor proatividade, tornando-lhe mais difícil obter um aumento ou promoção no emprego, defender seus interesses financeiros e assim por diante. Assim, quando este tipo de indivíduo encontrar uma pessoa assertiva, no fundo ela sentirá ressentimento e culpa, o que torna sua sombra ainda mais densa e escura.
Esses aspectos valiosos devem ser assimilados na experiência real e não reprimidos. Cabe ao ego abrir mão de seu orgulho.
Segundo Jung, também encontramos nossa sombra em nossos sonhos, como uma pessoa do mesmo sexo que o sonhador. É o que parece ser uma crítica do nosso caráter vinda do inconsciente, um juiz interior do nosso próprio ser que nos repreende, e o resultado é geralmente um silêncio constrangido.

Devemos identificar os conteúdos da sombra e integrá-los em nossa personalidade. Este é o processo de "realização da sombra", também conhecido como trabalhar a sombra. Aqui começa o doloroso e longo trabalho de autoeducação. É preciso entrar em longas e difíceis negociações com a sombra, um feito que, poderíamos dizer, é o equivalente psicológico dos trabalhos de Hércules.
Por meio do trabalho com a sombra, pode-se observar a própria sombra externamente, observando as reações emocionais e sendo radicalmente honesto sobre nossas interações com os outros, e internamente, explorando os próprios sonhos. Isso permite que a pessoa se torne mais esclarecida e reduz o potencial destrutivo da sombra, não tanto, por assim dizer, guerreando contra a escuridão, mas trazendo a escuridão para a luz, e a luz para a escuridão.
Não há luz sem sombra e nem totalidade psíquica sem imperfeição.
— Carl Jung, Psicologia e Alquimia
Não se deve buscar a perfeição, mas sim a totalidade da personalidade. O processo de individuação ao longo da vida cria um equilíbrio entre os reinos consciente e inconsciente de uma pessoa, alinhando o ego ao self, a totalidade da personalidade de uma pessoa. Por mais assustador ou sombrio que seja confrontar nossa sombra, encontrar a verdade traz alívio. O discernimento da verdade é o processo de autenticidade; uma escavação meticulosa nas profundezas do nosso ser para explorar as possibilidades, as limitações, as distorções, as habilidades e as partes enterradas e muitas vezes esquecidas de nós mesmos.
A maioria das pessoas, no entanto, é apática demais para pensar profundamente sequer sobre os aspectos morais de seu comportamento consciente; assim, muito menos provável é que reflitam sobre como o inconsciente as afeta.
A sombra também pode consistir em fatores provenientes de uma fonte externa à vida pessoal do indivíduo. É quando nos deparamos com a sombra coletiva, É importante resolver primeiro os próprios conflitos internos (a própria sombra pessoal), para que não se caia na sombra coletiva inconscientemente. o lado sombrio ou os aspectos desconhecidos ou pouco conhecidos de uma sociedade ou cultura. Ela consiste naquilo que se opõe aos nossos valores compartilhados e coletivos. A sombra coletiva refere-se a um aspecto descomunal, multidimensional, muitas vezes horripilante, mas indescritível da vida humana — a uma imensidão de danos infligidos pelos seres humanos uns aos outros, ao mundo natural e aos vastos efeitos de tais danos nas gerações subsequentes.
Encontramos a sombra coletiva em projeções de posturas nefastas ou de inferioridade, na violência e na opressão, na invisibilidade do sofrimento atual, na negação da responsabilidade atual. Embora os conteúdos da sombra coletiva possam ser representados brutalmente na forma de guerras, massacres e genocídios, eles também podem se esconder sob o manto muitas vezes atraente do ativismo político ou religioso, como a obrigatoriedade do uso de línguas particulares, uma realidade orwelliana que estamos vivenciando no tempo presente.

Como é da natureza de todo conteúdo da sombra, seja individual, seja coletiva, sua existência e influência podem ser difundidas sem serem óbvias. A sombra coletiva se manifesta externamente em atrocidades, perseguições, sofrimento físico, doença, pobreza, desnutrição, alcoolismo, crime, morte de culturas e assim por diante. Também pode se manifestar mais internamente, em meio às complexidades da psique de cada indivíduo, como ódio de si mesmo, de sua herança e de sua cultura, depressão e sentimentos de impotência, desejo de vingança (no sentido de inflingir sobre outros a dor que se sente), etc.
A sombra coletiva é o que historicamente foi rotulado de "mal". Na tradição cristã seria o diabo, e quem é possuído pelo demônio perde sua qualidade humana e adquire uma natureza demoníaca.
Nossa principal resposta ao mal, para Jung, deve ser a busca do autoconhecimento, da totalidade, o que pressupõe a assimilação do conteúdo da sombra.
[O indivíduo] deve saber implacavelmente o quanto de bom pode fazer e de quais crimes é capaz.
— Carl Jung, Memórias, Sonhos, Reflexões
Quando há um problema conhecido em uma determinada sociedade, ele pode ser chamado de "problema de sombra" se houver evidência de negação, projeção ou falha em assumir responsabilidade, seja individual, seja coletiva. Portanto, assumir responsabilidades — moral, política e espiritual — é algo crucial.
A coragem com que suportamos nossa escuridão livra as demais pessoas de carregá-la por nós.
Recordar e falar sobre o que muitas vezes parece indizível é inevitavelmente um processo doloroso para vítimas e perpetradores, espectadores e testemunhas. Qualquer processo desse tipo só pode ser considerado bem-sucedido ou razoavelmente completo quando a dor, a indignação, a traição, o sofrimento e todos os outros sentimentos forem expressos e ouvidos e uma vez que a responsabilidade for assumida.

Dizer a verdade é a maneira mais desejável e viável de lidar com um passado difícil.
Um exemplo de uma terrível psicose em massa representada pela sombra coletiva é a Alemanha nazista, onde as pessoas assumiram uma natureza demoníaca através de sua sombra pessoal. Elas se juntaram ao partido nazista e fizeram coisas piores do que jamais poderiam ter imaginado ou teriam feito em condições sociais normais. Nesse sentido, a sombra pessoal é a ponte para a sombra coletiva.
Portanto, é importante resolver primeiro os próprios conflitos internos (a própria sombra pessoal), para que não se caia na sombra coletiva inconscientemente. Pode-se então influenciar outras pessoas, e a sociedade ficaria melhor como um todo.
Se praticarmos a atenção plena, saberemos como examinar profundamente a natureza da guerra e, com nosso insight, despertar as pessoas para que, juntos, possamos evitar repetir os mesmos horrores repetidas vezes. A guerra está em nós, mas também está em todos. Tudo está prestes a explodir e todos somos corresponsáveis.
— Thich Nhat Hanh, Tocando a Paz: Praticando a Arte da Vida Consciente
Para resumir, devemos primeiro reconhecer nossa sombra pessoal e entrar em longas e difíceis negociações com ela (ser honesto conosco e com nossas interações com os outros, observar nossas reações emocionais e explorar nossos sonhos), para não nos tornarmos vítimas passivas de nossa sombra e de nossas projeções inconscientes, permitindo-nos resgatar as boas qualidades que estão adormecidas dentro de nós, o que melhora nossa vida e a vida das pessoas ao nosso redor.
Podemos então estar conscientes da sombra coletiva e não ser vítimas dela. A coragem de suportar nossas trevas traz alívio para os outros, pois dizer a verdade é a forma mais desejável de lidar com um passado difícil, ao invés de descartar as atrocidades e deixar a sombra escurecer até não poder mais crescer, pois é assim que a história se repete.

Fontes: Eternalised https://www.youtube.com/watch?v=OhzBo0dZNpY