Escravidão: A Verdade História do Tráfico de Escravos | Fantástica Cultural

Artigo Escravidão: A Verdade História do Tráfico de Escravos

Escravidão: A Verdade História do Tráfico de Escravos

Por Paulo Nunes ⋅ 20 jan. 2020
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Dos escravos brancos aos escravocratas africanos, uma história completa da escravidão tem sido esquecida nas escolas, nas universidades e na sociedade, em favor de uma narrativa incompleta e em preto e branco.

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Quando pensamos em escravidão, pensamos de imediato na pessoa negra. Trata-se, para o bem ou para o mal, de uma associação unânime em nossa cultura. O escravismo, no entanto, vitimizou pessoas de todas as etnias e credos ao longo da história, e esteve presente em grande parte das sociedades. Por que associamos uma raça inteira, e apenas uma, à figura do escravo? Será possível superar o trauma histórico sem desfazer essa associação identitária?

No Brasil, a única forma de escravidão conhecida pelo amplo público é a do colonialismo europeu. É também a única forma de escravidão problematizada e trazida para a pauta atual (e apenas em parte). No intuito aparente de corrigir os erros do passado, os fatos apresentados nos documentos históricos e livros de historiadores especializados têm sido distorcidos e severamente editados no discurso público, na educação básica e nas universidades. Como se sabe, a história é facilmente transformada em instrumento ideológico: sua verificação é difícil, seu entendimento flutua conforme a interpretação e o arranjo que se faz dos fatos pode conduzir a conclusões diversas.

racismo

Assim, são interpretações do passado que fundamentam os principais debates políticos atuais, como as relações de gênero, de classe, de raça, etc. O racismo, sempre em destaque, é retratado como principal causa da escravidão: defende-se a noção de raças naturalmente opressoras (maléficas) e de raças naturalmente oprimidas (virtuosas). Esta visão de mundo, que tem servido de base para a formação de identidades, de códigos morais e de políticas públicas, só é possível à custa de uma absoluta ignorância histórica.

Ganância, não racismo

De todos os exemplos históricos de escravidão, o critério racial figura como o mais incomum. Quase sempre, a escravidão esteve ligada à ganância e à estratificação social, sendo a raça um fator frequentemente irrelevante.

O racismo foi apenas uma das várias formas utilizadas na justificação da escravidão. Outras tantas razões foram elaboradas: captura de inimigo em batalha, endividamento, filiação religiosa, passado criminal, etc. Acredita-se que tais práticas tenham sido comuns desde a sedentarização da espécie humana, A escravidão inter-racial encontra exemplos em todo o mundo conhecido... Durante séculos, os vikings sequestraram outros europeus e os venderam como escravos para compradores como os islâmicos e os bizantinos. por volta de 9 mil anos a.C., com a formação das primeiras civilizações (povos com hierarquias sociais complexas).

É bem sabido, por exemplo, que a democracia grega só pôde existir devido à sua base econômica escravista. A prosperidade vivenciada em Atenas, no período clássico, foi em boa parte produzida e sustentada pelo trabalho de escravos capturados em batalha ou cidadãos escravizados por endividamento. Não havia distinção de raça, sexo, idade ou credo. A justificação ateniense para o escravismo não era, portanto, uma suposta inferioridade racial dos escravos, nem a xenofobia; a prática justificava-se porque era exercita em todo o mundo conhecido. Assim como os egípcios mantinham escravos hebreus, os hebreus, após libertos, mantiveram escravos na Palestina. Em Roma, no século I a.C., acredita-se que 30-40% da população era escrava. A prerrogativa, em todos esses casos, era a mera conveniência econômica.

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Navios corsários de captura de escravos (Laureys A. Castro, 1681)

Na Europa, pode-se citar o tráfico de escravos coordenado pelos vikings: além de saquear vilarejos ao longo da costa, durante séculos os vikings sequestraram outros europeus e os venderam como escravos para compradores como os islâmicos e os bizantinos. Em parte alguma existia, como se pode pensar atualmente, uma noção de unidade cultural de raça, nem um sentimento de fraternidade ou solidariedade comum. A percepção de pertencimento do indivíduo era vinculada principalmente à sua comunidade (tribo, Estado, etc.), não havendo objeção moral à prática da escravidão inter-racial - comum entre os povos europeus, africanos, asiáticos e ameríndios (América pré-colonial).

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Ritual de sacrifício humano asteca praticado com escravos (séc. XIX)

Note-se, também, que o termo escravo é derivado do indo-europeu, tendo surgido em referência aos povos eslavos (frequentemente escravizados ao longo da história). Os eslavos ocupam a Europa central e a Ásia central, hoje representados pelos tchecos, poloneses, russos, ucranianos, croatas e outros vários grupos. Da palavra slav (eslavo) derivam os termos slave (inglês), Sklave (alemão), esclavo (espanhol), esclave (francês), schiavo (espanhol) e escravo (português).

Em termos de proporção, os dois maiores sistemas escravistas da história foram o do colonialismo europeu e o dos muçulmanos. Estima-se que o primeiro foi responsável pelo tráfico de 11 milhões de pessoas (durante quatro séculos de vigência); já o segundo teria traficado cerca de 17 milhões de pessoas (durante aproximadamente onze séculos).

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Um mercado árabe de escravos no Cairo, por David Roberts

O mercado escravagista muçulmano tinha dimensões intercontinentais. Não havia discriminação em relação à raça, e qualquer indivíduo que não pertencesse ao islamismo corria o risco de ser escravizado (a religião era o único critério excludente). Assim como no caso do colonialismo europeu, sua principal fonte de escravos era a África, mas calcula-se que cerca de 1,25 milhões de europeus também foram capturados por corsários muçulmanos entre os séculos XVII e XIX, nas mais diversas partes da Europa (Itália, França, Inglaterra, Irlanda, Espanha, Portugal, Holanda e Islândia). Os piratas, provenientes da costa africana (Marrocos, Argélia, Tunísia e Líbia), atacavam principalmente no Mar Mediterrâneo, com aval do califado. Uma vez capturados, os homens eram encarregados de trabalhos pesados (grande parte era castrada - os eunucos) e as mulheres eram encaminhadas para serviços domésticos ou sexuais.

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Assim, a África já conhecia os horrores da escravidão vários séculos antes do colonialismo europeu. E o mesmo vale para os povos das Américas. Astecas e maias, cada qual de acordo com sua cultura, costumavam assassinar seus escravos em sacrifícios cerimoniais (inclusive crianças, no caso dos maias). Entre os grupos tribais do Brasil, havia pouco uso para escravos, devido à ausência de um sistema de produção ou infraestruturas complexas a serem mantidas; assim, como uma alternativa à escravidão, muitas tribos praticavam canibalismo com os inimigos capturados em guerra.

Por se tratar de um fenômeno global, a escravidão inter-racial encontra exemplos em todo o mundo conhecido. Quando voltamos nossa atenção para a África, porém, nos deparamos com um tópico tabu, já que os fatos entram em conflito com muitas das narrativas ideológicas contemporâneas. Entre os que negam a existência de africanos escravocratas e os que alegam que a escravidão local era moralmente aceitável, ou branda, quase ninguém consegue falar no assunto sem o temor do rótulo (já absolutamente banalizado) de "racista".

Mas vamos a ele.

Escravidão entre os povos africanos

Grande parte dos povos tradicionais africanos admitia a escravidão como o nível mais baixo de sua hierarquia social. No caso das sociedades tribais, não havia necessidade justificável de mão de obra extra: como eram incomuns a construção arquitetônica e as plantações extensivas, o fator ganância influía pouco. Já entre as comunidades maiores, ou reinos, o uso de trabalho escravo era mais A grande maioria dos escravos retirados da África foi vendida por governantes africanos, pelos comerciantes africanos e pela aristocracia militar africana, que enriqueceram por meio deste negócio. comum, mas, de forma geral, a principal função do escravismo na África tradicional era a marcação de status (a dominância de um indivíduo sobre outro era entendida como uma glória pessoal, familiar ou comunitária).

Mas isso foi antes do contato com outros povos, como os muçulmanos, a partir do século IX, e os europeus, a partir do século XVI. Ainda durante a Alta Idade Média, o Islã passou a oferecer recompensas consideráveis aos povos da costa leste africana em troca de escravos. Com o tempo, a rede foi se estendendo pelo interior do continente. Foi assim que a já habitual captura de membros de outras tribos, em batalha, passou a ser praticada em larga escala. Mais tarde, com as Grandes Navegações, povos da costa oeste africana também adotaram o mesmo sistema de enriquecimento, suprindo o tráfico negreiro europeu.

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Mercado árabe de escravos, por Otto Pliny

Conforme o historiador Diego Marque, em Desvendando a história da África, os povos da África subsaariana expandiram muito suas redes de captura para suprir a demanda dos muçulmanos por escravos homens, mulheres e crianças; o lucro foi essencial para a consolidação dos reinos do Sudão Ocidental.

A escravidão na África se intensifica consideravelmente na medida em que o Islã vai se expandindo. As cortes faustosas dos reinos muçulmanos precisavam, sobretudo, de escravas, seja para compor o harém, seja para fazer os serviços domésticos palacianos ou mesmo para trabalhar na agricultura. Meninos ou pré-adolescentes também são muito requisitados, com vistas a serem educados militarmente [...] A partir da queda de Songai [império africano], os escravos acabaram se tornando o principal produto de exportação da África subsaariana [...], fato que teria implicações bastante sérias e desastrosas para as populações africanas negras, sobretudo nos séculos posteriores.

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Tráfico de escravos ao longo do rio Senegal, no reino de Cayor (1821)

Na África, os principais beneficiários do tráfico escravagista foram os governantes locais, os membros da aristocracia e os grandes mercadores. Assim como no caso do colonialismo europeu, os escravos do povo suaíli, do leste africano, eram obrigados a trabalhar nas plantações. E assim como no colonialismo europeu, muitos dos escravos serviam às classes altas.

Conforme relata o explorar e diplomata Hassan al-Wazzan (conhecido como Leão, o Africano) por volta de 1510:

Aqui [Gao, capital do império de Songai] há um lugar onde os escravos são vendidos, especialmente nos dias em que os mercadores se reúnem. E um jovem escravo de quinze anos é vendido por seis ducados, e também se vende crianças. O rei dessa região tem um certo palácio sagrado onde mantém grande número de concubinas e escravos.

No outro lado do continente, o Reino de Daomé (Danhome, hoje Benin) também prosperou com base na venda de escravos.

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Escravas sexuais em um mercado de Zanzibar

Recebendo imensas ofertas dos europeus, os líderes locais ampliaram drasticamente a atividade de captura sobre os povos vizinhos, o que transformou Daomé em um dos principais fornecedores de escravos no mercado transatlântico.

Em seu ensaio Tráfico escravo: uma raiz da crise na África contemporânea, Tunde Obadina escreve:

A grande maioria dos escravos retirados da África foi vendida por governantes africanos, pelos comerciantes africanos e pela aristocracia militar africana, que enriqueceram por meio deste negócio. A maioria dos escravos foi adquirida por meio de guerras ou sequestros. Os governantes, os comerciantes e a aristocracia militar da África protegeram seu interesse no tráfico de escravos. Eles desencorajaram os europeus de deixar as áreas costeiras para se aventurar no interior do continente. [...] As companhias [europeias] não poderiam ter reunido os recursos necessários para capturar diretamente as dezenas de milhões de pessoas traficadas da África. Era muito mais sensato e seguro dar armas aos africanos para que eles travassem as muitas guerras que renderam cativos para o comércio. A rede de comércio de escravos se estendia profundamente no interior da África. As companhias escravagistas estavam cientes de sua dependência de fornecedores africanos.

Por volta de 1500, o reino de Daomé chegou a trocar embaixadores com Portugal, a fim de consolidar as relações diplomáticas e facilitar a parceria econômica. A importância desse comércio era tal que, com a proibição da escravidão imposta pela Grã-Bretanha sobre todo o Atlântico, no século XIX, o rei Gezo de Daomé chegou a declarar que faria qualquer coisa que os britânicos quisessem, exceto abolir o comércio de escravos. Afirmou ele:

O comércio de escravos é o princípio fundamental de nosso povo. É a fonte de nossa glória e de nossa riqueza [...] a mãe põe seu filho a dormir cantando o triunfo sobre um inimigo reduzido à escravidão.

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Tippu Tip, comerciante de escravos de Zanzibar, chegou a possuir 10 mil escravos

Não é de se estranhar. Os valores ético-morais contemporâneos não estão presentes desde o início dos tempos; eles foram elaborados ao longo da história. A escravidão era universalmente vista como um fato natural da civilização humana, tanto pelos escravocratas quanto pelos próprios escravos. Sabe-se, por exemplo, que mesmo em casos como o do gladiador Espártaco, que liderou uma revolta de quase 40 mil escravos durante o Império Romano (71 a.C.), a motivação dos rebeldes era apenas escapar, e não reformar o sistema. A ideia de abolição como um princípio de justiça ainda esperaria muitos séculos para ser formulada.

A escravidão como crime: uma invenção ocidental

Hoje, tomamos por óbvio que todo ser humano deve ser livre. Partimos do princípio universal de que nenhum indivíduo pode tratar outro como sua propriedade privada. É paradoxal que a nação responsável pelo maior mercado de escravos da época foi também a única a proibir a escravidão em seu próprio território. Essa visão de mundo, porém, é bastante recente, e nasceu de condições históricas excepcionais.

Em nenhuma parte do mundo, antes do Iluminismo (século XVIII), concebeu-se a ideia de liberdade individual inata. Ainda que muito se celebre a democracia, conforme seu modelo original grego, é notável que esse sistema não garantia, por si só, o tratamento igual a todos os indivíduos (mulheres, escravos e estrangeiros estavam excluídos do processo democrático). O mesmo vale para o sistema republicano, inaugurado pelos romanos. Foi o liberalismo clássico, iluminista, a primeira proposta de organização social a defender a igualdade absoluta dos seres humanos perante a lei, advogando pela liberdade inata de todo indivíduo em relação a outros indivíduos e ao Estado (sendo esta uma das primeiras formulações dos direitos humanos). À época, tratava-se de uma noção radical.

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Cristãos escravizados em Algiers, na Argélia (séc. XIX)

Ao nos opormos à escravidão, hoje, tendemos a acreditar que nossos valores éticos são fruto exclusivo de nosso julgamento pessoal. Como resultado, há pouca compreensão sobre as origens de nosso código moral e de conduta, e a quem devemos as ideias em que acreditamos (o que consideramos justo/injusto, certo/errado, bom/ruim). No caso do direito universal à liberdade, as origens podem ser encontradas não apenas nos ideais iluministas, mas também na filosofia judaico-cristã que os fundamentava.

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Índios soldados da província de Curitiba escoltando prisioneiros nativos, por Jean-Baptiste Debret

A Igreja católica, dividida entre a moral religiosa e os interesses seculares político-econômicos, quase sempre cedeu à conveniência do sistema escravista. Muitos teólogos consideravam a escravidão incompatível com os princípios de justiça e de caridade cristãs, mas esse idealismo era pouco popular entre os que se beneficiavam com as leis vigentes. Nota-se essa ambivalência do cristianismo, por exemplo, no contraste entre as ações de caridade (hospitais, abrigos, escolas e universidades) e as atrocidades da Santa Inquisição. Assim, apesar de ter conseguido pressionar Portugal e Espanha a proibirem a escravidão indígena durante parte do período colonial (sem muito sucesso prático), a Igreja admitiu, através de bulas papais, a "servidão perpétua" de muçulmanos e pagãos africanos.

O longo processo de abolição da escravatura no Ocidente teve como estopim o caso do escravo norte-americano James Somersett, em 1772. Em viagem à Inglaterra, Somersett conseguiu escapar de seu mestre, Charles Stuart, e procurou a ajuda de Granville Sharp (um dos primeiros abolicionistas ingleses). Somersett acabou sendo capturado pelos caçadores de escravos contratados por Stuart, que o enviariam para ser vendido na Jamaica, mas uma mobilização foi organizada por Sharp em seu favor. Cidadãos ingleses interviram e arranjaram-lhe um habeas corpus; e com o auxílio de doações e de serviços pro bono prestados por advogados, decidiu-se pela libertação de Somersett. Entendeu-se que "um escravo torna-se livre ao pisar na Inglaterra" - uma lei estabelecida no país pela Igreja em 1102, mas que nem sempre foi lembrada ou aplicada.

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Escravidão na Nova Inglaterra, Estados Unidos

É paradoxal que a nação responsável pelo maior mercado de escravos da época foi também a única a proibir a escravidão em seu próprio território. Essa contradição alimentou o crescimento de movimentos abolicionistas no país e, nas décadas seguintes, a Marinha Real compôs a Esquadra da África Ocidental, dedicada a suprimir o tráfico de escravos do Atlântico. De 1808 a 1860, cerca de 1.600 navios negreiros foram capturados e aproximadamente 150.000 africanos foram libertados pela Esquadra da África Ocidental.

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Tráfico de escravos, por Auguste Francois Biard

Os Estados Unidos, também divididos nesse período entre a defesa dos direitos universais do cidadão e a conveniência econômica do trabalho escravo, acabariam abolindo a escravidão com o fim da Guerra de Secessão, em 1865. A lei, entretanto, não pôde ser imposta sobre vários povos de indígenas norte-americanos proprietários de escravos negros, pois a região que habitavam (atual Oklahoma) encontrava-se fora do território norte-americano. Esses povos nativos utilizavam os escravos inclusive em plantações de algodão, como os colonizadores europeus; a libertação de seus cativos seria efetivada nos anos seguintes por meio de acordos propostos pelos Estados Unidos.

Como é bem conhecido, o Brasil foi o último país independente da América a abolir a escravidão, com a Lei Áurea de 1888. Na escala global, a última nação a fazê-lo foi a república islâmica da Mauritânia, no oeste africano, no ano de 1981.

Em 2009, o Congresso de Direitos Civis da Nigéria se manifestou em relação à responsabilidade compartilhada dos povos no tráfico de escravos:

Tendo em vista o fato de que os americanos e a Europa aceitaram a crueldade de seus papéis e se desculparam forçosamente, seria lógico, razoável e humilde que os governantes tradicionais africanos [...] [pudessem] aceitar a culpa e se desculpar formalmente com os descendentes das vítimas de seu comércio colaborativo e explorador de escravos.

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Propaganda inglesa abolicionista retrata a crueldade no tratamento de escravos

Atualmente, estima-se que existem no mundo de 21 milhões a 46 milhões de pessoas vivendo em condições análogas à de escravos (a maior parte são crianças). Em vários países onde a escravidão já havia sido abolida, a prática tem retornado.

Mas os fatos importam?

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Trabalho escravo no gulag de Kolyma, União Soviética

Nosso conhecimento do passado é muito frágil, pois a história não existe senão na narrativa dos historiadores, desenhada a partir de sua coleta factual. Confiamos aos guardiões do passado esta função crucial: informar-nos, com honestidade, sobre nossas origens, fundamentando a construção de nossas identidades particulares e coletivas. Mas entre os documentos históricos e a narrativa dos profissionais militantes, muitos dos fatos se perdem, e a ideologia política dá nova forma e uso ao passado.

Uma história ideológica, porém, não é história: é propaganda.

A partir da seleção parcial dos fatos, das omissões, da manipulação interpretativa, dos itens colocados fora de contexto, das generalizações, pode-se usar os dados históricos coletados para chegar a conclusões as mais diversas, dependendo da narrativa criada pelo propagandista para conectar os fatos, excluindo os inconvenientes e atribuindo significados forçados a outros. Como resultado dessas estratégias ideológicas, percebe-se na cultura atual uma noção danosa do homem negro, eternamente vinculado à herança escravista, à chaga, ao suplício, e do homem branco, vinculado à herança escravocrata, à culpa, à vileza. Uma noção historicamente insustentável.

Parte da liberdade de ação, da autodeterminação, é removida do indivíduo quando a cultura lhe imputa uma identidade forjada baseada em interpretações históricas parciais. Ao branco, ao negro, ao índio, pardo, judeu, caberia carregar, querendo ou não, o peso de um passado distorcido, caricatural, elaborado por terceiros; caberia ao indivíduo responsabilizar-se pelos crimes dos mortos, e pagar por eles, ou então sofrer as dores das vítimas dos séculos, numa repetição induzida, insuperável por definição. Se essa é uma forma de justiça, é uma das mais bizarras: com ela, ninguém restará inocente, e a todos caberá reparação. Quanto mais escavarmos o passado dessa forma, mais atrocidades serão conjuradas para o presente, e mais fantasmas assombrarão nosso futuro.

É esse o futuro que queremos?

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Fontes:

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Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador




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