Situação de Guimarães Rosa

Desde 1962, quando saiu a primeira edição deste volume, João Guimarães Rosa não publicou nenhum outro livro. Entretanto, nestes últimos anos, a sua situação literária passou por modificação substancial. Transpondo as barreiras linguísticas não só do próprio idioma, mas também as que o escritor parecia erguer adrede em torno da sua obra, esta inesperadamente se transformou em artigo de exportação: farejada pelos noticiaristas literários, descoberta por editores da Europa e da América, transposta a duras penas para as grandes línguas de cultura, ela está sendo saudada pela crítica internacional como a revelação de um universo novo e lida pelos públicos mais exigentes.
Que um ficcionista nosso, livre de vinculações políticas, avesso a qualquer facilidade e intransigente em seus padrões artísticos, tenha conquistado, pela autenticidade da sua mensagem, audiência internacional — isto abre novas perspectivas à valorização das letras brasileiras no mundo. E note-se que o conseguiu embora desfalcado de algumas de suas características mais peculiares, pois toda a arte dos tradutores, ainda que disponham da virtuosidade de um Meyer-Clason, não pode deixar de atenuar-lhe a torrencial força expressiva.
Daqui em diante a evolução dessa arte deixa de ser assunto interno: mesmo aos livros vindouros do ficcionista estão asseguradas, desde já, vasta expectativa e acessibilidade universal. Não é provável, contudo, que o reforçamento da acústica venha a exercer modificação sensível nos seus processos de criação.
Como todo grande artista, o nosso autor escreve para si mesmo, para o próprio deleite, catarse e realização. É de esperar, portanto, que o saber-se ouvido por um auditório muitas vezes maior venha apenas corroborar-lhe a poderosa originalidade, exalçar-lhe as tendências íntimas, que, de volume a volume, se acusavam com maior vigor.
A amplitude do êxito é motivo de satisfação para os críticos brasileiros, que, logo depois do aparecimento do primeiro livro de Guimarães Rosa, souberam discernir-lhe o alcance ultranacional. O mais ouvido de todos, Álvaro Lins, apontou-o imediatamente como "o que deveria ser o ideal da literatura brasileira na feição regionalista: a temática nacional numa expressão universal".
Justificação desta nota introdutiva

A obra de Guimarães Rosa, de riqueza e complexidade crescentes, estimula cada vez mais o trabalho da exegese. Note-se, porém, que mesmo os críticos mais aparelhados para a tarefa só a empreendem com precauções e ressalvas, como que intimados a definir primeiro o próprio ofício e a precisar-lhe as limitações. Enquanto não explanada, a obra se constitui de um conjunto de sugestões inseparavelmente entrelaçadas; destacando uma ou outra, a explanação relega as demais à sombra, além de romper os fios de interligação. Por isso é que, ao apontar três planos superpostos em Grande sertão: veredas, mestre Cavalcanti Proença se apressa em acrescentar: "É preciso, porém, ressaltar o artificialismo desta simplificação, pois que as várias camadas se interpenetram, não sendo possível delimitá-las, mas unicamente acentuar-lhes as características e conexões que nos permitem esta divisão genérica. Decorre dessa complexidade uma abundância de elementos alegóricos, uma simbologia muito densa, além do caráter polissêmico das personagens."
Vilem Flusser, em sua notável glosa ao conto "As garças" (posterior a este volume), aponta outro perigo: a crítica "afrouxa a densidade e traduz o conto da camada vivencial para a intelectual". As tentativas de explicação acabam, sem querer, apoiando o traço de desenhos cuja magia está no esvaimento dos contornos, por dar expressão matemática a um conjunto em que não há equações perfeitas.
Oswaldino Marques, em seu penetrante ensaio "Canto e plumagem das palavras", todo ele consagrado à arte de Guimarães Rosa, julga indispensável uma definição prévia das tarefas da análise literária, uma das quais consiste em "tornar manifestos, a posteriori, os elos subconscientes da construção formal para definir os meios originais de que se valeu o artista no tour de force da imitação" (e, por se tratar de Guimarães Rosa, poderia ter dito "os elos subconscientes, e os conscientes, mas ocultados").
Adolfo Casais Monteiro, estudioso eminente dos problemas do romance, em face de Grande sertão: veredas, renuncia à pretensão exegética para apenas "refletir sobre o livro que nos deixou profunda impressão, para nos esclarecermos mais do que esclarecer seja quem for — e muito menos para ensinar nada ao autor".
Não é outra coisa que se propõe o prefaciador de Primeiras estórias ao tentar expor, mais uma vez, suas razões de deslumbramento e espanto ante um livro de Guimarães Rosa. De suas conversações com o autor, nas quais vislumbrou numerosos subentendidos que lhe tinham escapado durante a leitura, ficou-lhe a convicção de que mesmo ao olhar mais agudo seria impossível abranger a totalidade intrincada das intenções do mais consciente dos nossos escritores. Se, apesar disso, se atreve a perlustrar o mais labiríntico de seus livros, onde a perspectiva, a atmosfera e a temperatura emocional mudam mais de vinte vezes, é apenas para exemplificar uma das muitas maneiras de acercamento amoroso de uma obra de ficção com que as nossas letras contribuem para o enriquecimento da literatura mundial.
Por que "primeiras" e porque "estórias"?

Cada novo cume atingido é, para o artista criador, um triunfo e um perigo. A obra-prima realizada impõe a obrigação de superar-se. Em Corpo de baile, Guimarães Rosa soube corresponder à expectativa suscitada por Sagarana; em Grande sertão: veredas, soube ir ainda mais além; e soube renovar-se nestas Primeiras estórias, que, não obstante o seu volume pouco alentado, formam outra etapa importante na reta da sua ascensão e obrigam o comentarista a rever suas apreciações anteriores. Há vinte anos, num artigo sobre Sagarana, antevi a vocação de romancista do futuro autor de Grande sertão: veredas, mas pus em dúvida seus dotes para o conto curto. Hoje estou persuadido de que suas inesgotáveis vivências se cristalizam, por assim dizer, automaticamente no gênero mais apropriado.
Na falta de precisões da "orelha" do volume, o título pede duas palavras de explicação.
O epíteto não alude a trabalhos da mocidade ou anteriores aos já publicados em volumes, e sim à novidade do gênero adotado, a estória. Esse neologismo de sabor popular, adotado por número crescente de ficcionistas e críticos, embora ainda não registrado pelos dicionaristas, destina-se a absorver um dos significados de "história", o de "conto" (= short story). A oposição conceitual resulta nitidamente deste trecho de "Nenhum, nenhuma": "Era uma velha, uma velhinha — de história, de estória — velhíssima, a inacreditável."
Embora o termo, hoje em dia, já apareça também sem conotação folclórica, referido às narrativas de Guimarães Rosa envolve-se numa aura mágica, num halo de maravilhosa ingenuidade, que as torna visceralmente diferentes de quaisquer outras.
Diversidade e unidade

Nisto já antecipamos a característica dominante da coletânea: sem embargo de sua extrema diferenciação, as vinte e uma estórias acabam dando uma impressão de homogeneidade perfeita — tal como as novelas de Sagarana se fundem em unidade, ou como as sete narrativas de Corpo de baile emergiram intimamente associadas da imaginação do artista.
Diversos, antes de mais nada, os assuntos: tente-se recontá-los em breves palavras para ver quantos.
Diversas as situações, os problemas envolvidos e suas soluções. Note-se ainda que cada espécime pertence, por assim dizer, a outra variante ou subgênero — o conto fantástico, o psicológico, o autobiográfico, o episódio cômico ou trágico, o retrato, a reminiscência, a anedota, a sátira, o poema em prosa... Distinga-se a multiplicidade dos tons: jocoso, patético, sarcástico, lírico, arcaizante, erudito, popular, pedante — multiplicidade decorrente não só do tema, senão também da personalidade do narrador, manifesto ou oculto. Observa-se a variedade da construção e do ritmo.
Contudo as histórias se apresentam com inconfundível ar de família, nimbadas do mesmo halo, trescalando o mesmo perfume. O seu parentesco não se reduz a traços estilísticos: provém de uma concepção pessoal tanto da vida como da arte.
Cada estória tem como núcleo um acontecimento. Mas o sentido atribuível a esse termo não é o que lhe dão comumente os dicionários, isto é, não é sinônimo de ocorrência. "Parecia não acontecer coisa nenhuma", adverte-nos o contista certa vez; e em outra ocasião pondera, ainda mais explícito: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo."
Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir.
Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.
Os que desencadeiam essa corrente e nela se banham sentem-na com toda a intensidade, mas encontram dificuldade em comunicá-la. Ainda que tenham o verbo fácil, falta-lhes o domínio da linguagem abstrata e exteriorizam suas fortes experiências íntimas com toda a sua riqueza de matizes numa língua concreta, saborosa e enérgica; a maioria, porém, compõe-se de taciturnos, desajeitados e ensimesmados, que nem tentam exprimir-se e passariam despercebidos pela vida se não encontrassem quem lhes emprestasse a voz. Reconstituir a fala daqueles, traduzir o silêncio destes — eis a tarefa do contista.
Até os contos que não se enquadram neste esquema representam, de uma ou de outra maneira, sondagens no inconsciente; assim a evocação e reconstrução, pelo adulto, de vivências infantis ou juvenis só parcialmente entendidas na época, ou o monólogo do introspectivo à procura do próprio eu sob as camadas superpostas pelas contingências do viver. O espetáculo tragicômico do demente encarapitado no alto de uma palmeira enseja um estudo de patologia individual, e outro, de patologia coletiva. As próprias narrativas anedóticas se prolongam, pelas alternativas sugeridas, num plano outro que não o real.
Cenário e substrato social

A maioria dos contos desenrola-se numa região não especificada, mas identificável como a das obras anteriores do autor: o mundo da sua infância e da sua mocidade. Menos onipresente do que naquelas, onde chega a desempenhar papel de protagonista, o cenário é esboçado com poucos toques, mas de extrema precisão. Sunt nomina rebus: bichos e plantas têm nome e atributos seguros; costumes e hábitos, misteres e fainas revivem na sua autenticidade minuciosa. As cenas enquadram-se na moldura de altos morros e vastos horizontes, amplos rios margeados de brejos, campos extensos de muito pastoreio e escassa lavoura, fazendas enormes — as do Pãodolhão, do Torto-Alto, do Casco, Congonha, Santa-Cruz-da-Onça, Lagoa-dos-Cavalos — forçosamente auto-suficientes, que se abastecem a si mesmas de víveres, artigos de primeira necessidade, folguedos, superstições e justiça. Acostumados a não encontrarem vivalma por muitas léguas, fazendeiros e agregados, desconfiados e pouco comunicativos, tornam-se reticentes mesmo no recesso da família; a falta de intercâmbio aparta-os dos demais; acabam encaramujando-se. Do ensimesmamento ao isolamento, deste à mania, o caminho é direto; os taciturnos calam-se de vez, e um dia surpreendem a família com o estouro da sua demência.
Nos intervalos das fazendas ocultam-se arraiais pobres, de reduzida povoação — o arraial do Breberê, o povoadinho do M'en-gano, o lugar chamado o Temor-de-Deus — sem quaisquer recursos de organização social. A lei do mais forte — a única existente — é exercida na fazenda sob formas paternalísticas pelo dono, assistido, para o que der e vier, dos rifles certeiros de alguns capangas; nas vilas, pelos valentões do lugar, detestados e temidos; nas escassas cidadezinhas, pela polícia local, que, para fazer-se respeitar, tem de pedir emprestados os métodos de arbitrariedade. Em contato com os elementos imemoriais da paisagem, nuvens e ventos, montes de perfil invariável, sendas de largura constante, as mesmas árvores, o mesmo gado, a vida corre numa rotina secular, regulamentada por vetustos códigos de honra que determinam inflexivelmente os deveres do parentesco, da amizade e da hospitalidade, assim como os da inimizade e do ódio.
Os vastos espaços desertos são povoados pelos devaneios da imaginação. Os riscos e os imprevistos da dura vida do dia-a-dia produzem resignação e fatalismo. Nos casarões da fazenda encontram-se à mesa parentes, amigos e comensais de incerta procedência; acotovelam-se crianças e macróbios sobreviventes de tempos idos; acolhem-se e escondem-se fugitivos; dissimulam-se segredos do clã. As raras quebras do ramerrão são motivos de alvoroço, espetáculo para os basbaques, agitação para os insofridos. A sede do sobrenatural gera santos e suscita milagres, matiza a religião de variantes animísticas.
Personagentes

Ocupar-me-ei mais adiante dos neologismos de Guimarães Rosa e da probabilidade de eles se incorporarem ao idioma. Em todo o caso, "personagente", mais que personagem e menos que protagonista, é dos que poderiam introduzir uma nuança útil na nomenclatura da crítica.
Pois bem, na multidão de figurantes de Primeiras estórias, os "personagentes" quase todos pertencem a duas categorias, a de loucos e a de crianças. Os da primeira são particularmente numerosos. Rodeados da áurea de sapiência e santidade de que os cerca o povo, exibem infindáveis esfumaturas e gradações da demência. Impossível traçar, aliás, a linha de demarcação entre esta última e a normalidade, tanto mais quanto por vezes a mais previdente e calculadora sabedoria se disfarça em mania ("Nada e a nossa condição"), enquanto a loucura pode heroicamente adotar soluções de bom senso que a razão pusilânime não ousa levar em consideração ("A benfazeja") ou recorre a ardis de incrível sagacidade ("O cavalo que bebia cerveja"). Desmascarada e refreada quando irrompe num ímpeto ("Darandina"), a alienação é aceita como parte dolorosa da rotina da vida quando se declara paulatinamente ("A terceira margem do rio"). Ao contista suas variantes interessam não como casos clínicos (embora frequentemente revele conhecimentos fora do comum, relacionados com seus antecedentes de médico), e sim como campo propício à invasão do irreal, do irracional, do mágico — numa palavra, da poesia. E, na medida em que permanece acessível a esses poderes, o homem "normal" tem seus instantes de exaltação. Assim, quando Sorôco, após despachar a mãe e a filha loucas, retoma por sua vez a desatinada canção trauteada por elas, a multidão circundante imita-o sem querer. E o velho Iô João de Barros Diniz Robertes, "encostado, em maluca velhice" e "aprazado de moribundo", quando sai da modorra senil para uma última e quixotesca cavalgada, arrasta atrás de si uma multidão magnetizada. "Ninguém é doido. Ou, então, todos." A loucura enche os vazios da vida, solta fogos de artifício, escancara os horizontes.
Ao lado dos doidos, as crianças formam grupo menor, mas importante, "estrelando" cinco estórias. Elas
"fazem parte de uma curiosa estirpe de personagens, preludiada por Miguilim e Dito, de 'Campo Geral', e à qual pertencem infantes de extrema perspicácia e aguda sensibilidade, muitas vezes dotados de poderes extraordinários, quando não possuem origem oculta ou vaga identidade" (Benedito Nunes). Ou ainda tropecem nos pedregulhos da palavra ou já se deslumbrem com a sua cintilação, embrenham-se com olhos virgens nos mistérios do mundo e voltam com excitantes descobertas. Nos contos inicial e final realiza-se a gageure de fazer desfilar pela sensibilidade de um menino, com o pensamentozinho "ainda na fase hieroglífica", os grandes problemas existenciais do bem e do mal, e, através da sua decifração, é transmitida uma mensagem de otimismo e de fé. Alhures, Nhinhinha, crescida no isolamento da roça, é, por isso, isenta da visão convencional dos fenômenos, vislumbra-lhes os segredos em acenos que, para a testemunha culta, são manifestações elementares de lirismo, e, para os parentes simplórios, emanações de santidade. Brejeirinha, seu oposto na vivacidade da inteligência, mas sua parenta no frescor da imaginação associativa, encontra tanto divertimento nas palavras como nos objetos, utilizando umas e outros como brinquedos. (Poder-se-iam ver nas duas meninas as encarnações da poesia popular e da erudita.)
Pela evocação de vivências análogas às de todos nós, assistimos com curiosidade total à aventura dos meninos atores de "Pirlimpsiquice", exemplo de virtuosismo em seu ritmo arrebatado, estudo de psicologia juvenil, mas também relato de um desses milagres do cotidiano que são o domínio específico do autor. A embriaguez desses colegiais entregues à elaboração de uma "sobrepeça" à margem da peça que ensaiam é extraordinária, e contudo tão plausível quanto à experiência do Menino que, transportado para a grande cidade que se ergue do chão num lance de mágica, teima em ver o milagre em dois perus e num tu-cano.
Enfoque e perspectiva

O crítico Dante Moreira Leite assinalou, em Grande sertão: veredas, a transcendência do modus narrandi adotado: relatório feito pelo protagonista a um estranho que se limita a ouvi-lo como o psicanalista ouve as confidências do paciente. "O romance somente adquire sentido diante do interlocutor quase silencioso que não interfere nas interpretações e nem na fabulação de Riobaldo." Analisando noutro estudo a novela "Campo geral", do nosso autor, escrita na terceira pessoa convencional da ficção, mas que apreende apenas a experiência do menino Miguilim, ressalta Dante Moreira Leite que o recurso era necessário, "pois a história não poderia ser narrada pelo herói a não ser como evocação, e isso (...) destruiria o seu núcleo fundamental, que é a perspectiva da criança".
Teve toda razão o ensaísta ao apontar nessas duas obras a importância intrínseca do que poderíamos chamar o enfoque da história; a observação pode ser generalizada em relação a todas as obras de Guimarães Rosa, pois em todas elas o ponto de vista do narrador constitui elemento essencial, mais de uma vez verdadeiro fio de Ariadne.
Às Primeiras estórias, especialmente, a constante variação da perspectiva confere descomunal riqueza de cambiantes, muitas vezes um elemento suplementar de mistério. Algumas, segundo toda a evidência, têm raízes em experiências pessoais do autor e envolvem sua participação direta, ainda que não muito intensa. O máximo de sua presença ativa note-se em "Pirlimpsiquice": ainda assim, ele funciona menos a título individual do que como parte de uma coletividade. Noutros casos desempenha o papel de figurante passivo ("Famigerado"), presenciador inconsciente ("Nenhum, nenhuma"), testemunha e comentador ("Fatalidade", "A menina de lá"), evocador e exegeta.
À primeira pessoa da narração pode corresponder o eu — não do autor, e sim de um relator nominalmente designado cuja personalidade se vai delineando paralelamente ao desenrolar-se da ação ("Luas-de-mel", "O cavalo que bebia cerveja", "—Tarantão, meu patrão"), ou a pessoas sem nome mas possuidoras de personalidade, como o narrador de "O espelho", em que vamos identificando um desses solitários autodidatas da província que se emaranham nos fios de suas infindáveis especulações, ou o de "A terceira margem do rio", que se vem contagiando com a demência do pai. Dos outros eus, o de "Darandina" tem seus pontos de contato com o autor, de quem partilha (e exagera) as fantasias verbais e o pendor filosofante; o de "A benfazeja", revelador dos sentimentos inconfessados de uma comunidade, parece mais uma personificação do que uma pessoa.
Nas estórias contadas em terceira pessoa observam-se também divergências no grau de participação do invisível narrador. Se a sua parte, em "Sequência" ou em "Substância", se reduz à onipresença e à onisciência convencionais do ficcionista, em "Sorôco, sua mãe, sua filha" e "Os irmãos Dagobé" diz respeito antes a um membro não individualizado da multidão a testemunhar os fatos contados. Em "Partida do audaz navegante", a subjacente simpatia do autor acusa reminiscências de infância. Em "As margens da alegria" e "Os cimos", que se apartam do resto do volume em estrutura e propósitos, o autor existe para decifrar os pensamentos hieroglíficos do Menino.
Essa série de substituições, procurações e disfarces, esse brincar de esconde-esconde não serve só de provocação e estímulo: habitua o leitor a dar a volta da história e a repensá-la. Qual não seria o caso de Nhinhinha narrado não pelo autor, compassivo mas ainda assim distante, e sim por Tiantônia? ou o do remador que embarca para nenhures, se glosado não por quem lhe sofre o desvario na própria carne, mas por um espectador chistoso como o de "Darandina"? Afinal, o próprio relato metamorfoseia-se em ação e enredo: haja vista a ambivalência e a evolução dos sentimentos do capanga Reivalino em relação ao patrão. Tem-se aí outra história à margem da primeira, de mistério não menos profundo que o do cavalo bebedor de cerveja.
Estrutura

Sabe o nosso autor, como poucos, graduar a emoção, criar suspenses, produzir a expectativa de catástrofes. Essa expectativa, porém, frequentemente não é satisfeita: as estórias acabam sem explosão, os conflitos esvaziam-se em resignação ou apaziguamento — e, contudo, o leitor não se sente frustrado. Em "Famigerado", "Os irmãos Dagobé", "O cavalo que bebia cerveja", "Luas-de-mel", "Darandina", "— Tarantão, meu patrão", o conflito esperado deixa de se cumprir, o desfecho realiza-se no íntimo das personagens. Nesse corajoso — e convincente — emprego do anticlímax deve-se ver prova decisiva de mestria na arte de tramar histórias.
Outro motivo de beleza estrutural será o desenvolvimento paralelo de dois enredos que se completam e explicam, sendo que o secundário só se entrevê intervaladamente. Em "Luas-de-mel", a chegada de uma moça raptada e o casamento realizado às pressas sob a ameaça de um ataque armado reacendem a sopitada ternura conjugal no velho fazendeiro que acolheu os fugitivos; em "Partida do audaz navegante", a burlesca brincadeira inventada por uma criança desencadeia em duas outras uma incipiente paixão juvenil.
Armar um mistério no começo da narrativa para no fim satisfazer, por meio de uma explicação minuciosa, as exigências de um leitor raciocinante, é processo que Guimarães Rosa só excepcionalmente adota. Prefere esconder a explicação no título ou entre dois parênteses, sugeri-la em termos velados, fornecê-la por partes, antecipá-la do modo mais insólito. Gosta ainda de insinuar apenas uma das explanações possíveis, admitindo a plausibilidade de outras. Em qualquer destes casos, o leitor é forçado a abandonar a sua inércia, tornando-se colaborador.
Se quiséssemos representar a ação de cada conto por uma linha, obteríamos riscos bem variados, desde a reta simples até a parábola e a espiral. Em relação à primeira composição do volume, por exemplo, ela daria uma curva ondulante de acordo com as oscilações do pensamento do Menino. Quando, pela primeira vez, a intuição da intensidade do existir o leva a um auge, dá-se uma queda brusca, pela revelação da morte individual; vislumbrada uma possível compensação da vida da espécie, ei-lo em nova ascensão. Mas só por pouco tempo esse avatar lhe parece um remédio ao caos, pois outro mistério, revelado no ódio do bicho vivo ao morto, remergulha-o no abismo. Encadeados, os enigmas sucedem-se, e essa percepção aterra e consola sucessivamente.
Coisas gerais

Nem só essa história se prolonga pelo plano metafísico. Quase todas são pluridimensionais, carregadas de significado oculto. Todos os rios do mundo de Guimarães Rosa têm três margens.
Os temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superficiais da realidade que os nossos sentidos percebem. Mas "em volta de nós, o que há, é a sombra mais fechada — coisas gerais".
O universo é, ao mesmo tempo, ordenado e caótico. Sua ordem, inacessível à nossa percepção, pauta nossas existências, preestabelecidas, imutáveis. Precisados de segurança, ansiamos por alguma orientação e alguns pontos de apoio, e pelejamos "para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica". Nesse esforço inventamos as três faces do tempo: ora, a nossa duração é indivisível e cada um dos instantes sucessivos que rotulamos de presente contém todo o passado e todo o futuro. Ignorando-o, agitamo-nos e procuramos reverter o tempo, livrar-nos do passado a desviar o futuro, trocar de destino, iludir-nos com a ideia de optar, quando apenas estamos trilhando a senda dos "futuros antanhos". Fazendo planos, tomando decisões, organizando a nossa vida, não notamos que "algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...". A unidade e o sentido dessa vida ficam-nos ocultos, pois o seu desenho só se completa com a morte, também preexistente.
Visão artisticamente fecunda, mas de profunda tragicidade, essa concepção do mundo é suavizada pela importância que nela cabe ao amor, um amor carnal "que gera o espiritual e nele se transforma" (Benedito Nunes). Este é que nos traz os momentos de exaltação e sublimação em que damos conta exatamente do nosso recado e melhor nos igualamos ao rosto ideal que vivemos a buscar no espelho.
O choque estilístico

O leitor brasileiro que porventura entrar em contato com a arte de Guimarães Rosa através de Primeiras estórias inevitavelmente haverá de experimentar um choque, devido à agressiva novidade do estilo, à qual os leitores antigos do autor se vêm habituando progressivamente. (Falamos no leitor brasileiro, porque o estrangeiro, que a conhecer através de tradução, terá forçosamente sob os olhos um texto atenuado e filtrado, adaptado pelo tradutor aos padrões existentes da língua acolhedora.)
Lembre-se que o autor fez sua aparição na literatura como escritor regionalista. Não adotara, porém, nenhuma das três técnicas à disposição do regionalismo: servir-se da linguagem regional indistintamente em todo o livro, restringi-la à fala das personagens, ou substituí-la integralmente por uma linguagem literária, convencional. A quarta solução, adotada por ele, consistia em deixar as formas, rodeios e processos da língua popular infiltrarem o estilo expositivo e as da língua elaborada embeberem a linguagem dos figurantes. Disse língua elaborada e não culta: Guimarães Rosa, conhecedor dos mais profundos do idioma, não se satisfaz em explorar-lhe todo o tesouro registrado e codificado, mas submete-o a uma experimentação incessante, para testar-lhe a flexibilidade e a expressividade. Daí um estilo personalíssimo, que das obras de caráter regionalístico se alastrou por toda a obra de ficção do nosso autor, e até por suas raras produções ensaísticas.
Fez, em suma, Guimarães Rosa, em relação à linguagem, o que todos os ficcionistas fazem da realidade, sua matéria-prima: desagregam-na e reconstituem-na a seu bel-prazer, tratando as suas parcelas como elementos de mosaico; com pedaços e traços de pessoas vivas constroem as suas personagens; fundindo cenas e acontecimentos registrados pela própria memória, deles tiram episódios e enredos. Com clarividência notável, Antonio Candido define o mundo de Guimarães Rosa como um universo autônomo "composto de realidades expressionais e humanas que se articulam com harmonia, superando por milagre o poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma".
Entre os motivos dessa experimentação, do contínuo alargar do registro da língua, figura, sem dúvida, o propósito de amoldá-la para exprimir matizes e modalidades até então não observados da realidade que aguardam denominação para penetrarem na consciência comum. "O poeta se distingue como um aparelho altamente discriminante da infinita multiplicidade de aspectos do ser" (Oswaldino Marques). Mas o motivo principal, mais de uma vez declarado pelo próprio ficcionista, consiste em dar "toque e timbre novos às expressões amortecidas". Como pertinentemente observa Cavalcanti Proença, o nosso escritor outra coisa não faz "senão apelar para a consciência etimológica do leitor, neologizando vocábulos, reavivando-lhes o significado (obliterado ou por demais esquecido pelo uso corrente), dando-lhes uma precisão que esse mesmo uso acabou por destruir. Uma espécie daquele silêncio que desperta os moleiros quando cessa o rolar do moinho."
Nas considerações seguintes, tenta-se não a catalogação dos recursos estilísticos manejados no presente volume (e que daria outro volume), e sim, apenas, a indicação exemplificada das tendências a que correspondem. Não se ignora o risco deste trabalho: os espécimes montados em alfinete com fins de coleção, rígidos e murchos, podem parecer meras esquisitices e até monstruosidades, por mais que vicejem e resplandeçam no contexto do seu ambiente natural, vitalizando-o e animando-o.
Oralidade

Ao autor da presente introdução falta convivência com o povo do interior brasileiro e, especialmente, da região que serve de cenário à maioria dessas estórias para que possa tentar uma distinção da contribuição popular lato sensu e da nitidamente regional; por isso adota o termo acima, que lhe parece determinar com bastante exatidão uma das principais coordenadas da linguagem rosiana.
Suas páginas porejam modismos e fórmulas que estamos habituados a ouvir na boca de pessoas do povo e que, em seu frusto vigor, dão à fala popular sabor e energia deliciosos: "Nosso pai nada não dizia."; "Do que eu mesmo me alembro"; "Nossa casa, no tempo, era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua"; "perto e longe da sua família dele"; "avisado que nem Noé"; "A gente, firmes, sem mover o passo".
Os exemplos poderiam ser multiplicados. É precisamente o formigar de tais rodeios que dá a leitores menos avisados a ideia de que o autor se propõe a mera reprodução da linguagem popular. Com essa ideia metida na cabeça, logo vão implicar com o primeiro neologismo e apontar em triunfo aquele "destom" como exemplo de insucesso.
É desconhecer a própria essência dessa arte tão provocadoramente original. A predileção do autor por fórmulas populares de uso geral não o impede de se deleitar com insólitas locuções individuais nem de inventar outras que, golpeando em cheio o leitor, lhe possam inculcar uma percepção nova.
Tem toda a aparência popular e regional o uso do artigo definido à frente dos adjetivos indefinidos, adotado pelo autor — como as demais práticas de estilo oral — mesmo em trechos em que ele fala por conta própria: "As muitas pessoas"; "o parente nenhum"; "a alguma alegria"; "o certo solerte contentamento"; "a alguma recomendação"; "pelas certas pessoas"; "a tanta importância"; "as todas manhãs"; "a muita criatura". Essa praxe paradoxal, oriunda talvez do desejo de aumentar a massa sonora e o peso da locução, nota-se também no caso de expressões onde normalmente a indefinição se patenteia pela ausência de determinantes: "iam dar na gente a tremenda vaia!"; "O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro".
O leitor citadino, especialmente carioca, encontrará o mesmo sabor regional no uso do subjuntivo com valor de condicional — "Nem olhasse mais a paisagem?"; "nem fosse possível"; "constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação" — ou de indicativo, com matiz dubitativo: "só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele [brejão]"; "Por certo esse Herculinão Socó desmerecesse a mínima simpatia humana"; "e tão apartado em si se conduzia ele (...) que jamais quase a referisse pelo nome".
Observando a fala de pessoas de poucas letras, ou de todo não alfabetizadas, podemos notar quão frequentemente elas deixam a frase inacabada, como que suspensa, completando o sentido com o silêncio da pausa. Em Guimarães Rosa, o vezo, de tão frequente, ganha foros de categoria sintática: "queriam-lhe como quem"; "No que num engano."; "Sabiam o até-que-ponto"; "Aquilo era quando as onças."; "O que foi quando subitamente"; "Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se; menina só ave."; "Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado?". Dentro do contexto, todas essas frases — e muitas semelhantes — palpitam com o frescor da emoção. Um jovem crítico, Roberto Schwarz, em sua percuciente análise da linguagem de Guimarães Rosa, chega a ver em tais sentenças inacabadas a chave de toda a expressão do autor: "Podemos afirmar mesmo, dado encontrarmos frases irredutíveis ao esquema comum, serem estas as que devem orientar o nosso modo de ler, por realizarem mais radicalmente a dicção do livro. Através de umas tantas orações sem fio gramatical definível, fica instaurado um universo linguístico em que mesmo as proposições de lógica perfeita passam a pedir uma leitura diversa (...)." Especialmente o verbo de cópula ganha força em ser omitido quando substituído por interrupção do fluxo sonoro: "Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos?"; "O estilo espavorido."; "Atordoados, pois."; "A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos, mudando de cor, de amargor."; "O pasmatório." E, em nível literário: "Tia Liduína, que já fina música e imagem."
Caracteriza ainda o modo de falar das pessoas simples certo rebuscamento, a adoção de formas da linguagem escrita consideradas elegantes e não inteiramente assimiladas. É o que explica o aparecimento do gerúndio em orações relativas que depois o sujeito falante não sabe como acabar: "Seo Fifino (...) noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta."; "Seus sabedores informavam: que a marca sendo de grande fazendeiro." O particípio passado pode também assumir esse efeito desorganizador do gerúndio: "Vim ver quem. Aquele homem que chegado."; "acomodar os hóspedes, que esperados". Por expressivo, o modismo é adotado pelo próprio narrador: "Dava para se sentir o peso da [arma] de fogo, no cinturão, que usado baixo".
Efeitos enérgicos são tirados de outras irregularidades sintáticas, igualmente característicos do estilo oral: da regência imprópria ("E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear"); da concordância pelo sentido ( "e a gente fica quase presos, alojados na cozinha") e deste anacoluto expressivo que abre a undécima estória: "O espelho, são muitos".
Sonoridade

Essas citações devem ter feito entrever uma das qualidades paradoxais do estilo de Guimarães Rosa: suas páginas exigem leitura atenta e meditada, e, ao mesmo tempo, podem ser lidas em voz alta ou, pelo menos, com a colaboração ininterrupta da imaginação auditiva. Só assim poderão ser apreciados in totum e valorizados seus esforços originalíssimos de "transposição total para o plano auditivo de uma representação puramente visual" (Oswaldino Marques).
Há frases do nosso autor, precisamente das mais carregadas de significação, que exigem notação musical: "Infância é coisa, coisa?"; "Porque eu desconheci meus Pais — eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?"
A aliteração serve-lhe de subsídio pitoresco ou acompanhamento musical, marcadora de ritmo ou de monotonia, sinal de gravidade ou de graça: "Miúdo, moído."; "aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano"; "leigos, ledos, lépidos"; "Desconto (...) o em que me tive na mocidade: desmandos, desordens e despraças."; "Podia também ser de outra essência — a mandada, manchada, malfadada."; "conforme confere e confirmava". Em suas acrobacias verbais ressurgem as figuras da velha retórica: a homofonia: "ferramos fera briga"; o homoteleuto: "não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio"; o poliptoto: "Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve."; a figura etymologica: "as figurantes figuras, mas personagens personificantes".
A rima sentenciosa é um adjutório caracterizador (em "Luas-de-mel"): "Eu ponho a mesa e pago a despesa"; "cachorro, gato e espalhafato"; "Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e honrado."; "Herói é no que dói!".
Usa com o mesmo intento, ou como simples intermezzo lúdico, palavras pomposas e grandiloquentes, que ganham graça pelo emprego pernóstico: "Só vivo no supracitado."; "os Noivos (...) satisfatórios"; "aquele senhor (...) provisoriamente impoluto". Há muitos outros exemplos, sobretudo ao longo de "Partida do audaz navegante", onde o autor confirma implicitamente a ampla contribuição da linguagem infantil para seus processos de inovação mais ousados.
Com patente alegria sensual ele deixa arrebentar-se pelo batucar das onomatopeias: "Aí, o povaréu fez vêvêvê"; "o a-tchim-pum-pum dos foguetes"; "trupitar" de cavalos; "catastrapes!"; "chiquetichique", todos exemplos encontráveis em "— Tarantão, meu patrão", onde a reprodução imitativa começa no próprio título.
O prolongamento das palavras por meio de sufixos altissonantes — furibundância, circunspectância, esplendição, blasfemífero, ardilidade — ou pela ousada repetição de sílabas — sussussurrar, mumumudos, nesse interintintim — é praticado com intuito de intensificação semântica.
Assinale-se mais uma fonte de sonoridades sugestivas e classificadoras: os expressivos nomes próprios com que Guimarães Rosa gosta de brindar-nos, enfileirando-os às vezes em saborosas enumerações rabelaisianas. Nenhum outro autor nosso armazena tantos apelidos, alcunhas, epítetos, corruptelas de nomes e sobrenomes pitorescos e pedantes. Só em Primeiras estórias encontramos os quatro irmãos Dagobé: Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, além de Tãozão, Mão-na-Lata e Zé Centeralfe. E ainda, a sinistra tríade formada pela Mula-Marmela, Mumbungo e Retrupé; e Nhinhinha e a Nhatiaga; e Vagalume, de seu verdadeiro nome (!) João Dosmeuspés Felizardo: e Curucutu, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Gorro-Pintado... todo um catálogo bem brasileiro de extravagância denominativa.
Dinamização

Além desses aspectos pitorescos, convém destacar na linguagem de Guimarães Rosa o fator dinâmico ao serviço da representação do que ele chamou o "corrido, contínuo, do incessar". É um constante rebatizar de fenômenos já denominados, um contínuo buscar de nomes para formas que inesperadamente emergem do caos existencial; e também, às vezes, a criação de uma realidade nova que surge pelo poder da evocação verbal. Os processos dessa renovação não são, não podem ser puramente arbitrários, senão prejudicariam a comunicabilidade da mensagem. Na maioria dos casos são tomados de empréstimo à própria língua, e consistem na imitação e na intensificação de seus recursos evolutivos. Às vezes parecem sugeridos pelo espírito de outros idiomas. Vez por outra são produtos de uma invenção divertida, arbitrária e lúdica.
Naturalmente, nem todos os termos não dicionarizados de Primeiras estórias podem ser considerados como neologismos de fato. É praticamente impossível separar os vocábulos ainda não registrados na linguagem familiar ou regional e os que existem na língua em estado latente. São desse grupo, resultante de derivação regular, substantivos como terrestreidade ou cascalharal, adjetivos como multitudinal e gravitacional, verbos como trevar, andorinhar e bruaar. Outro grupo de plausibilidade semelhante é formado por palavras compostas de acordo com os moldes tradicionais: abre-tragos e borrafofo, gritamulta e ultramuito.
É impossível não notar um terceiro grupo, muito numeroso, constituído por derivados paralelos aos já existentes surgidos pela substituição do elemento derivador: perversia, simulagem, confusamento, estupefazimento e estupefatura, casamentício e casação, velhez, ceguez e mesmez, outros tantos doublets de feição geralmente popular que nem sempre se distinguem das formas banais por uma nova matização intelectual. "Haverá de causar espécie" — observa oportunamente Oswaldino Marques — "que, muitas vezes, o autor recorra a neologismos quando já conta a língua com palavras de uso corrente que expressem o mesmo conteúdo (...). Sua função primordial (...) é descondicionar os nosso hábitos verbais e levar-nos a reexperimentar as ideias ou sensações veiculadas. A comoção que nos agita arranca-nos, por assim dizer, à nossa letargia mental e nos obriga a repensar os objetos. A linguagem opera, desse modo, a contínua reativação das nossas vivências e nos abastece de conotaçãos insuspeitas."
Observemos que, desse ponto de vista, o mesmo sufixo pode exercer efeitos diferentes. Note-se a crescente intensidade do choque em sertanejice, aguaceirice e frutice.
Contribui para a tremulação ondeante do estilo o fato de certos sufixos aparecerem não somente em aliagens insólitas, mas também com carga semântica diversa. Nota-se isto em particular nos adjetivos formados com -oso e com -vel, mesmo quando simplesmente enfileirados fora de contexto: viuvoso, controversioso, sonhoso, tigroso, sobrossoso, artimanhoso, desadoroso, grossoso, terrivoroso; encantoável, assombrável, enlameável, cravável, comiserável, deslumbrável — nos quais o exame atento descobrirá alternadamente valor ativo ou passivo, nuança quantitativa ou qualitativa. O sufixo -ista, de conotação erudita, passa a nitidamente popular em poetista e namorista; o sufixo -az, petrificado, desenregela-se em zombaz e sanguinaz.
De fixidez bem maior que os sufixos de derivação, os prevérbios, imobilizados desde a época latina, voltam a ganhar na mão de Guimarães Rosa extraordinária vitalidade. Ao restituir poder denotativo ou intensificador a prevérbios esvaziados de sentido, o escritor, profundo conhecedor de várias línguas, parece ter-se deixado influenciar por idiomas como o alemão ou o russo, em que essas partículas até hoje conservaram vigorosa atuação. Os exemplos pululam: trasviver, trasmodo, trasvoo, transclaro e travisagem; tresentortado, tresbusco, tresenorme, tresbulício e tresincondigno; contristes, compesar e congracez; sobrecrente e sobreabrir-se; circunstristeza, contra-surpresa, obcego e perluzir. Juntamente com a tendência de antepor essas partículas a verbos, derivados verbais, ou mesmo a palavra de outras espécies, patenteia-se a de multiplicá-las. Tal tendência é característica do idioma húngaro cuja estrutura Guimarães Rosa conhece intimamente segundo se depreende de "Pequena palavra" com que prefaciou a minha Antologia do conto húngaro. Luiz Costa Lima Filho aponta com acerto o que esse prefácio tem de revelador; à sua leitura nota-se "o quanto de hungárico ele conscientemente incorporou à nossa língua literária". Alguns exemplos: altiloquar e altitonar, cabismeditado e cabisbaixar-se, bis-ver, vis-ver e vice-ver.
O maior número de incidências, como na língua comum, dá-se com os prefixos des- e in- em função criadora de antônimos. Eis alguns dos muitos exemplos que parecem inventados (ou apanhados pela primeira vez) pelo nosso autor: desacontecido, desaproximar-se, desconcernência, descarecer, desvárias (vezes), dessonambulizar, despreferência, desentregar-se, desesconder-se, desnascer e, até, desdeslembrar-se; inconfuso, inesperavam-se, impermanência, inquebrantar-se, inenganador, insabível, intrágico, inestimar, irreconhecer, increr, incomunhão, indecifrar, impoder, inconvir, inacional. Se o sentido de alguns é bastante claro, parece que outros são originados menos por uma visão concreta do que por indução do termo positivo, oposto. É nestes casos que, segundo a afirmação exultante de Vilem Flusser, "a língua portuguesa cria conscientemente, se quiserem cerebralmente e metodicamente, a realidade no-va". O escritor criou o conceito novo, e "os biólogos e os psicólogos virão, em seu tempo, para inseri-lo dentro da sua realidade".
Para quem percebe o mundo sob as espécies de luz e sombra, afirmação e negação, o método mais óbvio da criação conceptual de novas realidades é mesmo a invenção de contrastes. A sua inventariação permitiria uma compreensão mais profunda, não somente do estilo, mas da cosmovisão de Guimarães Rosa. Aqui fica, a título de sugestão, uma relação rápida de expressões e frases em que o advérbio não surge com valor tipicamente adversativo: "em não-tais condições"; "sua não rapidez"; "Eles se olhavam para não-distância"; "Satisfazer-me com fantásticas não-explicações?"; "desaparecesse no não"; "Olhava na direção do não."; "Acontecia o não-fato, o não-tempo"; "tão bom como tão não". Acrescentem-se dois trechos, particularmente significativos, do conto "A benfazeja", todo ele construído em dicotomias: "Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar, com um ato de 'não', sua existência doidamente celerada."; "E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem suportam de lembrar direito do delirido daquela risada."
Insensivelmente chegamos de uma linguagem predominantemente oral, de forte sabor popular, a outra, de alto teor filosófico. Só que as duas são uma só, inseparável e orgânica, apesar de toda a sua heterogeneidade.
A dissociação das parcelas semânticas observa-se não apenas em vocábulos, mas ainda nessas outras unidades léxicas que são as locuções. Palavras que estamos habituados a ouvir unicamente integradas em frases feitas voltam a agir por sua conta ou a emprestar mobilidade à expressão estereotipada: "com cara de nenhum amigo"; "Transfoi-se-me. Esses trizes"; "espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então"; "Capazes de qualquer supetão"; "me diz-que-disseram"; "E se humilhara, a menos não poder."; "o outro, no tir-te, se encolheu"; "E era o impasse de mágica."; "um deu-nos-sacuda".
Nos dois últimos exemplos, o processo confina com o trocadilho, recurso algo desconsiderado. Mas Guimarães Rosa não desdenha nenhum truque em sua luta com a expressão, verdadeiro catch as catch can em que todos os ardis são permitidos.
A derivação regressiva de substantivos, a que a língua frequentemente recorre em deverbais como apanha, derrama, derruba, etc., traz também contribuição para o léxico de nosso contista, em palavras como apavor, reobriga, ensimesmo.
Outro meio de enriquecer a expressão é impedir-lhe o empobrecimento. A ele recorre o autor de Primeiras estórias ao reativar o particípio presente, em via de desaparecimento, restituindo-lhe toda a força verbal: vejam-se pleiteantes brados, a mais buscante análise, e, ainda, espantante, pontuante, querente, requiescante, apalpante, decretante. Numa extensão de sentido contrário, alarga, ao mesmo tempo, o uso adjetivo do particípio passado: "a cada podido momento"; "olhos empalidecidamente azuis"; "entregadamente"; "alongada, sorrida, moduladamente".
O reagrupamento de semantemas estende-se, naturalmente, a toda a organização sintática, aproveitando os efeitos estilísticos que oferece a modificação da ordem costumeira das palavras. A mais óbvia dessas modificações é o destaque do adjetivo por meio de antecipação: "Seus muitos, sequazes homens"; "na prática verdade"; "pela indiferente rua"; "insuspeitado estilo".
Outras inversões que, em Retórica, seriam qualificadas de hipérbatos e de sínqueses: "e com quantos sem uso corredores"; "Só este é o seu, deles, diálogo"; "tudo apesar-de"; "o multitudinal silêncio — das pessoas de milhares"; "Se lhe de deveres e afetos falei!"; "o das-Finanças-Públicas secretário". Note-se que os quatro últimos exemplos são extraídos de "Darandina", onde neologismos, trocadilhos, onomatopeias e inversões estão a serviço de uma esfuziante comicidade — o que lembra que os processos estilísticos do autor não devem ser avaliados fora do clima de intencionalidade que lhes cabe no contexto.
Deixei para o fim um exemplo agressivo de tmese (que evoca a separabilidade do prevérbio alemão e húngaro): "E entrou — de peito feito. Àquelas quilas águas trans", para marcar o limite extremo da atomização estilística.
Não é de espantar que os sinais de pontuação tenham também o seu emprego alargado. Além do famoso exemplo constante do título de Grande sertão: veredas, os dois-pontos neste livro também transcrevem pausas sugestivas:
"Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso."; "A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares."; "Não viu: imediatamente."; "Antes do rio não viam: as aves que já ninhavam."
Como é mesmo que dizia Riobaldo? "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando." Tal como a linguagem.
O arbítrio criador

"Muita religião, seu moço!" — dizia ainda Riobaldo. — "Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo agora de todo rio..."
Ponha-se "língua" em lugar de religião, e aí temos uma definição estilística da obra de Guimarães Rosa. Nela estará acenada a hibridez de um sistema expressivo cujos elementos provêm de origens as mais variadas, em que termos de gíria ("o meu esmarte Patrão", "Moço esporte de forte") e latinismos ("assim vocado e ordenado"; "as infernas grotas"; "O padre Prefeito, solene modo, fez-nos a comunicação") se misturam aos rodeios de acentuado sabor popular e a preciosismos rebuscados.
Ao relacionar os componentes desse estilo, em seu estudo nunca assaz citado, Manuel Cavalcanti Proença afirma que, contudo, ele não constitui uma nova língua: "O que ocorreu foi ampla utilização das virtualidades da nossa língua, tendo a analogia, principalmente, fornecido os recursos de que ele [= o autor] se serviu." E para neles basear a analogia, Oswaldino Marques, em seu estudo igualmente fundamental, cita em apoio das inovações mais ousadas outros tantos "parâmetros", termos vernáculos tomados ao acaso.
Deve-se admitir, porém, a existência de praxes não apoiadas em analogias. Estão neste caso as amálgamas de dois vocábulos cuja fusão é provocada não por associação intelectual, mas pela coincidência sonora de uma sílaba. Duas palavras — fúnebre e brilho — fundem-se na parcela sonora comum em funebrilho, para designar uma noção (enfeite de caixão) até então não denominada com termo específico. Ou então diligente e gentil fundem-se para indicar a função momentânea de dois atributos em diligentil. Outros exemplos: personagente (já citado), perséquito, sussurruído, delirido, tumultroada, engenhingonça, afobafo, malandrajo, excelentriste, dançandoar-se, descreviver. De momento não me ocorre outro parâmetro a não ser tranquilômetro, tranquilometragem, pertencentes à pseudolíngua publicitária. Em tais casos a fantasia do autor substitui-se às tendências da língua entregando-se à criação arbitrária de neologismos com a mesma deleitação que inspira as bizarrices da linguagem infantil na boca de sua personagem Brejeirinha.
Nem sempre o significado dessas inovações é óbvio: mais de uma constitui enigma de decifração nada fácil, capaz de suscitar as interpretações mais desencontradas. Veja-se este exemplo, encontrado em "Nada e a nossa condição": "Ante e perante, à distância, em roda, mulheres se ajoelhavam, e homens que pulando gritavam, sebestos, diabruros". O leitor fica intrigado com o adjetivo não dicionarizado sebesto. Deverá ligá-lo a sebesta (nome de árvore) ou a sebo (especialmente das locuções: metido a sebo; ora, sebo!), tomá-lo por uma corruptela de sebento ou considerá-lo uma amálgama audaciosa de sebo + besta ou de se (pronome) + besta? Todas essas conjeturas, embora desencorajadas pelo contexto, hão de se apresentar ao espírito do leitor mais prontamente do que o verdadeiro radical, pedido emprestado ao substantivo grego sébas ("temor religioso", "veneração") e ao correspondente verbo sebo.
Outro exemplo, constante da "Pequena palavra" já citada, mostra também como seria ilusório pretender a uma compreensão integral de uma página de Guimarães Rosa. Ao caracterizar o divertimento dos pastores húngaros diz que "se alargam nas tabernas rurais, onde o país canta e dansa suas csardas, que em ritmo alternam: a lentidão melancólica e lassa — e — o ferver tenso agilíssimo de alegria doidada que alucina com um inaudito frisson". À primeira leitura o trecho não oferece dificuldades: mas se matiza de engenhosa musicalidade aos olhos de quem notar (mas quem notará?) que o autor, num enlevo de virtuoso, encontrou jeito de encerrar nele os próprios termos que, em magiar, designam as duas variantes do csárdás: lassu ("lento") e friss ("rápido"). Não é difícil prever a perplexidade dos autores de teses de doutoramento sobre a linguagem de João Guimarães Rosa (teses que já começam a aparecer, dentro e fora do país) dando tratos à bola para desvendarem os mistérios adrede espalhados pelo autor ao longo de suas páginas, enquanto este, de longe, os observa com discreta malícia e aquelas suas risadinhas cordiais de esfinge bem-educada.
Embora com raízes na língua, que não desconhece palavras de polivalência funcional (como longe, advérbio, adjetivo e substantivo), nas páginas de Guimarães Rosa os vocábulos ganham elasticidade quase ilimitada. Não somente substantivos, adjetivos e advérbios, mas conjunções e interjeições trocam de categoria funcional com grande facilidade: "Mas a Moça estava devagar."; "a gente (...) pensava num logo luar"; "Desço em pulos passos"; "outroras coisas"; "o que fácil não fiz"; "os futuros antanhos"; "mal dava para se ver, no escurecendo"; "a de nunca naturalidade"; "Sou de nem palavras."; "Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh."; "Disse de não, conquanto os costumes", etc.
Assim como nas enálages supracitadas o advérbio se disfarça em adjetivo ou substantivo, toda e qualquer locução adverbial pode-se revestir de função nominal: "Noutro de-repente"; "do meu mais-longe"; "os às-nuvens pináculos dos montes"; "aquela a-pique difícil fazenda"; "no entre algumas flores"; "o em-diabo pretinho Alfeu", passando até a se flexionar: "em-diabas confusões"; "ela batia com a cabeça, nos docementes". Mais ainda, uma frase qualquer se transforma em epíteto ou substantivo: "um narizinho que-carícia"; "no se é o que é que é"; "o em que me tive".
Quer dizer os materiais da língua estão em fusibilidade permanente, lavas que só criam forma ao derramar-se. Nem todos os produtos dessa criação vulcânica saem graciosos ou eufônicos: há os que irritam e provocam; mas o conjunto da erupção é um espetáculo que subjuga.
Por enquanto só se pode conjeturar a profundeza da revolução operada nas letras brasileiras por Guimarães Rosa. Quem assina esta introdução pôde, como árbitro de vários concursos de conto, observar a sedução exercida pelo seu estilo nos novos prosadores de todas as regiões do Brasil. Inimitável na intuição das correntes fundas do inentendível mundo íntimo, assim como na transferência de episódios locais para horizontes universais, sua obra, por enquanto, está agindo sobretudo pelo aspecto epidérmico. É de se esperar que nos talentos bastante fortes para se subtraírem ao perigo do arremedo servirá de estímulo para o desapego de todos os padrões tradicionais. Mas parece pouco provável que suas invenções e liberdades em sua totalidade venham a se enquadrar no corpus do idioma, precisamente porque seu poder está no vislumbre fugaz da instantaneidade.
"Evidentemente há coisas que só entenderá em Grande sertão: veredas o sertanejo, precisamente o menos provável de seus leitores" — pondera com espírito Adolfo Casais Monteiro. Estendendo a observação a Primeiras estórias, acrescentaria eu que há outras coisas que só o dialetologista, outras que só o filósofo, ou-tras ainda que só o psicanalista entenderá — o que equivale a dizer que nenhum leitor entenderá a obra na íntegra. Tenho que esse entendimento nem sequer é visado pelo escritor. Trabalhando como o cineasta, sabe que os detalhes de seus flagrantes só parcialmente serão percebidos pelo público na rápida sucessão das imagens e nem por isso deixa de calcular e apurar os seus menores efeitos. Por menos que pegue dessa profusão barroca, o leitor médio ainda pegará bastante para ceder ao encantamento.
Dessa própria riqueza surge a possibilidade de se encontrarem intenções e subentendidos mesmo onde não os há, de surgirem interpretações de surpreender o único detentor de todas as chaves da obra, o próprio autor. Até agora não me consta que ele tenha posto em dúvida a validez de qualquer explanação, nem creio que venha a fazê-lo. Mas tampouco fornece as chaves a ninguém. "Rosa não entrega nem a pau o mapa da mina" — segundo uma expressão feliz de Afonso Arinos de Melo Franco. Solta pelo seu criador, a obra passa a ter a sua própria vida, que a este não é dado nem retificar nem influenciar. Tudo leva a crer que os livros de Guimarães Rosa suscitem mais tentativas de decifração que os de qualquer outro escritor brasileiro, e que estas os tornem ainda mais densos e mais cheios de significados.
Conta-me Guimarães Rosa que os compositores de tipografia, não entendendo uma de suas palavras ou frases, têm-nas modificado involuntariamente; e que, ao rever as provas, tem-lhe acontecido não emendar o erro por decorrer de uma compreensão aceitável dos antecedentes, e por se ajustar bem ao contexto.
O grande tradutor de Grande sertão: veredas, Meyer-Clason (que neste momento está transplantando para o alemão estas Primeiras estórias), resolvera a maior percentagem possível dos enigmas verbais que formam o tecido desse romance gigantesco. Enganou-se, porém, ao tomar "lagarta-de-fogo" (equivalente de tatarana, alcunha de Riobaldo) por "lagartixa de fogo" e ao traduzir esse misterioso nome de bicho por Feuersalamander. Foi assim agregada à variante alemã do livro uma conotação alquimística e medieval inexistente no original, mas que o autor, depois de estranhá-la no princípio, acabou por admitir como perfeitamente compatível com o destino da personagem, que ganhava assim uma nova dimensão.
Espero ter dado ao leitor, nestas considerações prévias demasiadamente difusas, uma ideia pelo menos da extensão do mundo em que se vai embrenhar, com o risco certo de perder-se mais de uma vez e com a recompensa não menos certa de se reencontrar seguidamente a si mesmo nos muitos atalhos de Guimarães Rosa.
Paulo Rónai
Sítio Pois é (Nova Friburgo), fevereiro de 1966.