A Fila - Murilo Rubião | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo A Fila - Murilo Rubião | Conto Completo
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A Fila - Murilo Rubião | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 12 mar. 2022
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"Bem antes de serem abertos os portões da fábrica, ele já se encontrava em frente às suas grades."

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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião


E eles te instruirão, te falarão,
e do seu coração tirarão palavras.
(Jó, VIII, 10)

a fila murilo rubiao conto

Vinha do interior do país. Magro, músculos fortes, o queixo quadrado, deixava transparecer no olhar firme determinação. Não vacilou entre os dois portões do edifício, escolhendo o que lhe pareceu ser o da entrada principal. Dentro do prédio percorreu diversos corredores, detendo-se com frequência para ler os letreiros encimando as portas, até encontrar a sala da gerência da Companhia.

Atendeu-o um negro elegante, ligeiramente grisalho nas têmporas e de maneiras delicadas. O desconhecido calculou que o preto desempenhava as funções de porteiro, apesar das roupas caras e do ar refinado.

— Deseja falar com quem? — perguntou.

— Com o gerente.

— Emprego?

— Não.

— Seu nome.

— Pererico.

— De quê?

— Não interessa, ele não me conhece.

— Posso saber o assunto?

— É assunto de terceiros e devo guardar sigilo. Apenas posso assegurar-lhe que é coisa rápida, de minutos. Ademais tenho urgência de regressar à minha terra.

O porteiro abaixou-se até a mesinha, que ficava no canto da sala, retirando de uma das gavetas uma ficha de metal:

— Pela numeração dela — disse com um sorriso malicioso — a sua conversa com o gerente levará tempo a ser concretizada.

— Esperarei.

Acostumado talvez a respeitar a discrição dos que a li iam tratar de negócios ou obrigado pela função, o negro não formulou novas perguntas.

— Pode chamar-me de Damião — acrescentou, pedindo-lhe que o acompanhasse pelo corredor, onde ficavam os candidatos a audiências, dispostos em extensa fila. Os dois caminharam ao longo dela, desceram uma escada de ferro que dava para a parte externa da fábrica. Despediram-se no pátio, com uma última recomendação do crioulo:

— De hoje em diante, você deverá evitar a entrada principal, reservada somente aos que aqui vêm pela primeira vez. — E com o dedo apontava o portão dos fundos.

Ainda não seria naquela tarde que Pererico falaria ao gerente, pois somavam a centenas as pessoas que aguardavam a oportunidade de serem recebidas e as audiências terminavam impreterivelmente às dezoito horas. Nem assim se abandonou à impaciência, embora lhe fosse desagradável a perspectiva de uma estada demorada fora de casa. As observações colhidas durante o tempo que passou na fila poderiam ser úteis no futuro e aumentavam a sua confiança no sucesso da missão. Verificou também que as pessoas atendidas na gerência retornavam alegres, demonstrando ter solucionado seus problemas ou, pelo menos, sido tratadas com deferência.



No dia seguinte, bem antes de serem abertos os portões da fábrica, ele já se encontrava em frente às suas grades. As sete horas, após o toque da sirena, surgiu Damião com a caixa das senhas. Distribuiu-as entre os presentes, cabendo a Pererico uma de número elevado, o que o irritou sobremaneira:

— Estou entre os primeiros que aqui chegaram e recebo uma ficha alta! Denunciarei ao gerente a sua safadeza, negro ordinário!

O porteiro não se impressionou:

— As senhas de números baixos foram entregues aos que dormiram no pátio, através de distribuição interna. Quanto à sua queixa junto ao meu superior, vai demorar — concluiu sorridente.

— Como assim? — perguntou Pererico. — Por que essa discriminação, permitindo somente a alguns o privilégio de dormirem aqui?

— A permissão de passar a noite no recinto é dada aos que não fazem segredo dos assuntos a serem tratados com a administração da empresa.

Pererico conteve-se. Uma briga naquele instante poderia prejudicar seus desígnios, pois compreendera que o poder de Damião ultrapassava o de um mero empregado.

O seu descontentamento não se prolongou pela tarde adentro. Em certo momento, chegou mesmo a se julgar com sorte. É que, às dezessete horas, boa parte dos que integravam a fila a abandonaram, dispersando-se sem motivo aparente.

Abstraindo-se das razões que geraram a retirada em massa, consultava o relógio, mostrando-se excitado à medida que sentia aproximar-se a hora em que se avistaria com o gerente.

A última pessoa atendida, na sua frente, retirou-se minutos antes das seis e ele se preparava para ser recebido quando o porteiro afastou-o com o braço, dando passagem a um senhor de roupas antiquadas.

Surpreso e revoltado, Pererico agarrou Damião pelos ombros, sacudindo-o rudemente:

— Crioulo peçonhento, devia lhe dar uma surra por me ter passado para trás, mas não quero quebrar agora o seu pescoço. — Empurrou-o de encontro à parede e saiu.

Esgotara-se o expediente da Companhia.

Na manhã seguinte, ao chegar à fábrica, o negro recebeu-o com um esclarecimento e uma advertência:

— Você foi precipitado, ontem, por não ouvir minhas explicações. O cavalheiro que tomou o seu lugar marcara audiência há vários dias e, além disso, tratava-se de pessoa da intimidade do gerente. Quanto à agressão, espero que fique só na ameaça, para seu próprio bem.

Pererico mediu o adversário e se convenceu de que a represália jamais se concretizaria pelo desforço físico e isso era mau. Levando em conta que Damião procurara desculpar-se, considerou de bom alvitre atenuar a aspereza do seu procedimento na véspera:

— É que tenho necessidade urgente de retornar à minha cidade e a demora me impacienta. — Quis referir-se à escassez do dinheiro e arrependeu-se, temendo não ser entendido corretamente ou tomassem a confissão como uma fraqueza ou desejo de capitular.

Nesse dia a fila pouco progrediu e, bem antes de chegar a vez dele, encerrou-se o horário reservado ao atendimento público.



À sua arrogância inicial, sucedia-se o desânimo: acreditava ser difícil entrevistar-se com o gerente sem a interferência do negro.

Sempre lhe repugnara solicitar ajuda para resolver suas dificuldades. Mas a premência de regressar antes que gastasse o último centavo superou seus escrúpulos. Saiu à cata do negro:

— Quem sabe você conseguiria uma audiência especial para mim? Acho que me atenderão, se souberem da importância do meu assunto.

— Ninguém vem aqui por divertimento — retrucou o porteiro com certa rudeza, para abrandar em seguida a entonação da voz: — Desde que tem pressa de viajar, eu poderia resolver o seu caso, poupando-lhe o tempo.

— O meu problema foge à sua alçada — foi a resposta irritada de Pererico, a olhar intencionalmente as roupas caras do porteiro, duvidando da origem legítima delas.

A desconfiança que lhe infundira o oferecimento de auxílio por parte de Damião levou-o a evitá-lo. E essa disposição não o favorecia: as fichas que lhe eram fornecidas obedeciam a uma numeração cada vez mais alta e a fila caminhava com exasperante lentidão. Porém agarrava-se ferozmente a ela, apesar das perspectivas desfavoráveis. Contava talvez com um absurdo golpe de sorte: o gerente, tomando conhecimento da sua presença na fábrica, mandasse chamá-lo.

Ao lado da especulação, havia um dado real: o agravamento da situação financeira. O dinheiro chegava ao fim, sobrava-lhe pouco mais do que o necessário para comprar a passagem de volta. Nem a fome o constrangeria a dispor dessa importância, porque lhe vinha o mal-estar ao simples pensamento de permanecer indefinidamente naquele lugar.



Não conversava com ninguém, isolado no seu lugar. O seu retraimento chamou a atenção de Galimene, uma prostituta que aparecia, às tardes, no pátio da fábrica, desinteressada da pessoa do gerente, só para tagarelar com os homens e garantir alguns encontros noturnos. Tinha o jeito de passarinho e ria baixo, colocando a mão na boca, mesmo se a anedota fosse imbecil, contanto que agradasse aos possíveis clientes. Nem feia nem bonita. Apenas quando sorria, um sorriso meio triste, o rosto adquiria um toque de vaga beleza. A princípio, ela olhava-o com discreta simpatia, procurando uma desculpa para conversar com Pererico. Este não dava mostras de perceber o interesse dela, acreditando-o meramente comercial. Entretanto, quando a mulher se afastava, ele a acompanhava com o olhar, mal contendo a necessidade premente de fêmea.

Ao cabo de um mês, excluindo o dinheiro que reservara para a passagem de trem, sobravam-lhe uns poucos trocados para o café da manhã. Forçado a abandonar o hotel, dormia nos bancos dos jardins públicos e vivia esfomeado, a sentir dores agudas no estômago.

A meretriz percebeu a magreza dele e não teve que se esforçar muito para lhe adivinhar a causa. Trouxe-lhe um sanduíche, mentindo que comprara dois e estava sem fome.

Como Pererico recusasse aceitá-lo, Galimene convidou-o a ir, à noite, até a sua casa.

A recusa foi brusca, parecia revide a uma ofensa grave:

— Não tenho dinheiro.

— Para você não precisa — abaixara os olhos e, com o pé, chutava pedrinhas.



Também a Damião não passara despercebido o acentuado emagrecimento de Pererico. Aproveitou a circunstância para tentar a reaproximação.

— Você está seguindo um caminho errado e se sacrificando à toa. Nem remunerado deve ser. Se colaborasse comigo, tudo seria fácil. — Tirara do bolso a carteira e, aparentando distração, arrumava as cédulas pela ordem de valores.

Pererico, indignado, arrancou-a de suas mãos e atirou-a longe, esparramando as notas pelo chão.

À tarde, aceitaria alguns pastéis oferecidos por Galimene.

A atitude do negro ajudara-o a vencer a relutância em ser alimentado pela prostituta. Permanecia, no entanto, irredutível na decisão de recusar os convites para dormirem juntos, convencido de que já degradara dos seus princípios o suficiente.

O novo relacionamento quebrava a monotonia da interminável espera. Distraía-se com a prosa versátil da meretriz, cujos conhecimentos gerais eram incomuns no meio em que vivia. Apreciava nela a ingenuidade que a profissão deixara intacta, os modos discretos, o cuidado em evitar perguntas sobre o passado dele ou os motivos que o prendiam à fábrica.

Não se irritava pelas constantes tentativas de afastá-lo da fila, limitando-se a sorrir quando ela procurava seduzi-lo com a beleza da cidade, os passeios que poderiam fazer juntos. Somente se intranquilizava diante do argumento filial:

— Lá as mulheres são lindas, muito mais bonitas do que eu.

Mantendo-se na negativa, os olhos ávidos cravados no corpo de Galimene, conjeturava sobre a existência real de tão belas fêmeas.

Corria o tempo e a probabilidade de chegar ao gerente continuava remota. Por outro lado, não passava fome e se adaptara à pouca comida que Galimene lhe trazia todas as manhãs. Era o máximo que podia doar — o corpo não rendia muito num bairro operário. Lavava-lhe a roupa, dava-lhe conselhos:

— Ponha de lado o orgulho e explore a vaidade de Damião, que não resiste a um agrado.

— Se ficar mais um mês nesta maldita cidade, acabo dormindo com homem — respondia mal-humorado.

Ela não se importava com a reação e insistia:

— Afinal, o que você perde com isso?

— Bajular o crioulo? Prefiro a derrota. — Já reagia moderadamente, pensando na viabilidade da ideia. O desejo de voltar à sua terra contribuía para lhe amolecer a resistência. Por fim, concordou: — Vou, mas se ele me fizer de bobo, racho-lhe o crânio.



Consciente da sua sordidez, o asco em cada palavra, cuidava de reconciliar-se com o porteiro.

Começou por cumprimentá-lo discretamente. Depois vieram as frases convencionais, evoluindo para um elogio ao bom gosto do negro na escolha das gravatas e roupas. Damião sorria satisfeito, a aguardar um pronunciamento formal de Pererico sobre suas intenções, o que finalmente aconteceu:

— Bem sei que em mais de uma ocasião fui grosseiro com você. É que eu me enraivecia com a sua insistência em saber minúcias de um assunto sigiloso. Faço-lhe agora um apelo para que me consiga, sem condições e fora da fila, uma audiência com o gerente.

Sentia-se envergonhado pelo discurso, enquanto o crioulo aproveitava a oportunidade para exibir falsa modéstia:

— Há um pouco de exagero na sua confiança com relação ao meu prestígio. Quem marca esse tipo de audiência é o secretário da Companhia. Vamos lá — disse, pedindo-lhe que o acompanhasse.

Conduziu-o ao primeiro andar da fábrica e, no final de um extenso corredor, entraram numa saleta. O negro apontou para um homem baixo e magro, sentado em frente a uma escrivaninha:

— O meu colega, que está ali, lhe fornecerá a senha e as informações necessárias.

Pererico desconfiou do olhar de Damião, ao afastar-se, percebendo nele a malícia. A suspeita se confirmaria ao receber um cartão de número desproporcional à importância da pessoa com quem iria falar. — Escapava de uma fila e caía noutra.

— Quer dizer que tenho na minha frente quatrocentas pessoas?

O homenzinho assentiu com um movimento de cabeça e ele indagou quantos candidatos a audiência eram atendidos por dia.

— Quinze, às vezes vinte.

Um mês em seguida foi atendido pelo secretário. Afobado e feliz, mal o cumprimentou:

— Arre! Agora o gerente me receberá!

— Depende do que deseja.

— Pouco. Posso adiantar-lhe que é negócio importante e reservado.

— Lamento. Tenho instruções de encaminhar a ele apenas as pessoas portadoras de assunto de real interesse para a administração. Como posso saber se o seu é, desconhecendo os motivos que o trazem aqui?

— Isso é ridículo. Estou há quase seis meses nesta cidade em missão confidencial e não consigo falar a um porcaria de gerente! E será que tenho de revelar a todo o mundo um segredo que não me pertence?

— Nada posso fazer. Há outros em situação idêntica, aguardando com paciência a oportunidade de serem atendidos.



Aborrecido e desapontado, Pererico saiu à procura de Damião, relatando-lhe o ocorrido. O porteiro ficou apreensivo com o seu desalento. Temia que o desânimo o levasse a abandonar definitivamente a fila, coisa que não convinha aos interesses do negro. Precisava levantar-lhe o moral:

— Não se entregue ao desespero, nem deixe de vir todos os dias à fábrica. O acaso ou uma inspiração feliz poderão remover os obstáculos. Siga o exemplo dos que há anos esperam, confiantes, a vez de serem recebidos.

— A situação deles é diferente da minha: moram na cidade e estão perto dos familiares, dos seus negócios.

— Tenho a máxima boa vontade em abreviar o seu regresso. Entretanto...

— Já vem você querendo saber o que desejo do gerente.

— Seria mais simples do que viver à custa de mulher.

Pererico não aguentou o insulto e acertou um murro na boca de Damião. Este, limpando com o lenço os lábios a sangrar, externou o seu ressentimento:

— Você escolheu o pior caminho.



Galimene esperava-o no portão:

— Qual foi o resultado? — indagou, passando-lhe um sanduíche de carne.

— Negativo. E fiz uma grossa besteira: agredi o crioulo.

Ela ouvira-o em silêncio. Apenas os olhos expressavam a descrença quanto às possibilidades futuras dos projetos de Pererico que, nem por isso, cogitava de desistir:

— Bem, não posso reparar o que fiz. Só me resta aguardar a reação do negro.

Surpreendentemente Damião recebeu-o no dia seguinte com a cara risonha:

— Não fiquei magoado com o incidente de ontem. A sua reação foi justa e levei em conta as razões de sua atitude. Sou homem sereno. No momento em que você tiver uma visão objetiva dos fatos, pode procurar-me que o ajudarei. — E lhe estendeu a senha.

Pererico examinou-a. A numeração era alta, a maior que já lhe haviam dado. O primeiro impulso foi de jogar a ficha na cara do negro. Controlou-se, evitando repetir um gesto covarde. Não podia exigir, a qualquer pretexto, a simpatia do outro.

Dali para frente recusaria as senhas, distanciava-se da fila, a vagar pelo pátio, aferrado à esperança de encontrar o gerente saindo do escritório ou andando pelas ruas, se bem que ignorasse o seu aspecto físico e o roteiro de seus hábitos.

Colocava-se em lugares estratégicos, por onde o homem visado poderia passar; investigava as saídas em diferentes horários, inclusive experimentando ficar noites a fio em frente ou nos fundos do edifício da Companhia, e jamais o encontrou.

Galimene, inquieta, acompanhava-o de longe. Percebia-lhe a desorientação, sentindo amadurecer a oportunidade de lhe oferecer novamente o quarto e a cama.

Se a proposta viesse semanas atrás, a recusa seria pronta e ríspida. Mas a incerteza quanto ao tempo necessário para desincumbir-se do seu compromisso não dava margem a opções. Aceitou. Agarrado ao braço da mulher, recuperava a virilidade contida, desvaneciam-se as possibilidades de justificar-se.



Adaptara-se com relativa facilidade à nova situação, embora fosse irregular o horário das refeições e de dormir. Para deitar-se, ficava na dependência da saída do último cliente de Galimene, o que nem sempre acontecia antes da madrugada. Habituou-se a esperar pacientemente, porque a demora representava comida farta no dia seguinte.

Parava pouco na fábrica, deixando mesmo de ir lá, desde que encontrasse uma desculpa razoável para explicar seu procedimento. Damião lançava-lhe um olhar desaprovador, como se Pererico tivesse cometido falta grave. Por um momentâneo sentimento de culpa, voltava a chegar cedo e sair ao entardecer. Se estava bem-humorado, pedia a senha e ia embora, zombando do porteiro.



Aos domingos, Galimene debruçada na janela e Pererico sentado no meio-fio da calçada entretinham-se conversando pela tarde adentro, a menos que surgissem para interrompê-los alguns dos habituais frequentadores da pensão.

Se ele falava em tom nostálgico da lavoura e animais domésticos, ela se punha pensativa. Gostaria que Pererico esquecesse os bichos, o gerente, a Companhia e procurasse emprego. Tímida e humilde, não acreditava que pudessem morar juntos, longe dali, sem homens a separá-los. Sabia ser impossível tornar duradoura uma ligação destinada a se perder no efêmero.

No afã de fixá-lo na cidade, empenhava-se inutilmente em distraí-lo com algo que substituísse sua obsessão:

— Por que não aproveita o sol da manhã para ir à praia? Hoje ela fica cheia de belas mulheres.

— Não faz sentido dentro dos meus objetivos.

— Você conhece o mar?

— Nunca vi um!

— É pena. — Prosseguia, contando uma porção de histórias marítimas, que conhecia bem, sendo filha de marinheiro, nascida nas docas.

Cansados do mar a conversa caía no jardim zoológico, incentivando Pererico a contar proezas de animais ferozes de um circo americano que vira anos atrás. Deles voltava aos cavalos, vacas, galinhas, cabritos, o rosto transfigurado por alegres reminiscências. Galimene ouvia-o sem entusiasmo, a pensar na separação, que viria inevitavelmente quando ele acertasse o seu assunto na Companhia.



Eram dez horas de uma segunda-feira e dormira muito, razão pela qual caminhava indeciso, achando que perdia tempo indo à fábrica. Como passara quinze dias metido no parque, a observar capivaras e veados, correndo entre árvores, enquanto travessas crianças brincavam nos escorregadores, seguia sob a pressão do remorso por ter descurado tanto de seus deveres. Amaldiçoava sua vacilação, fraqueza que desconhecia antes de chegar àquela cidade.

Ao atravessar o portão dos fundos da fábrica, admirou-se de encontrar o pátio vazio. Subiu a escada de ferro, percorreu corredores, deparando no trajeto uns poucos funcionários que conhecia de vista. A presença de empregados eliminava a hipótese de um feriado.

Penetrou na antessala da gerência algo emocionado. Em frente à sua mesinha, Damião, trajando terno escuro, acolheu-o sem o costumeiro sorriso. Os olhos pareciam ter perdido o brilho, o rosto demonstrava cansaço.

Pererico recuperara a segurança e o poder de decisão que exibia quando ali estivera pela primeira vez. Caminhou na direção do negro, suspendeu-o pelas axilas, obrigando-o a levantar-se:

— Hoje, miserável, ou falo com o seu chefe ou lhe quebro os dentes e espatifo os móveis do escritório.

— A violência é desnecessária: o gerente morreu.

Largou-o. O choque fora violento. Contrafeito, restava-lhe uma pergunta:

— Ficaram muitos sem falar com ele?

— Somente você. Nas duas últimas semanas, prevendo a proximidade da morte, atendeu a todos os que apareceram.

O crioulo tinha outros detalhes a dar, porém Pererico dispensou-os. Sentia-se arrasado com a própria irresponsabilidade.



Pela maneira como entrou no quarto, Galimene pressentiu que alguma coisa de grave se passava com o companheiro. Olhava-o perplexa, esperando um esclarecimento dele que, em silêncio, pegara a maleta de viagem e nela enfiava as suas poucas roupas.

— Posso saber o que houve? — indagou a mulher.

— Traí os que confiavam em mim. O gerente morreu, todos falaram com ele e eu a ver veadinhos no parque.

— Não, Pererico, a sua culpa é pequena. Damião nunca lhe permitiria chegar ao gerente. Agora que você não tem obrigação de ir à fábrica, por que não fica? Poderia conseguir emprego.

— Odeio esta cidade.

— É injusto falar assim, conhecendo apenas o subúrbio dela.

— Nada mais tenho a fazer aqui.

— Nada? — interrogou, a fisionomia tomada por súbita tristeza.

Sentiu que a ofendera desnecessariamente e tentou consertar:

— Você deve compreender que estou fora de casa há muito tempo e preciso voltar o mais depressa possível.

Cabeça baixa, ela perguntou a que horas partiria o trem. Informada do horário, disse ter algumas coisas a fazer na rua, mas o encontraria na estação.

Ele quase pediu que não fosse, pois queria evitar o constrangimento da despedida. Desistiu, temendo magoá-la de novo.



Encontrou-a à sua espera. Sobraçava dois embrulhos, que entregou a Pererico. Abrindo-os, viu que continham camisa, calça, navalha e um frango assado.

— Você troca de roupa e faz a barba, para chegar com melhor aparência na sua terra.

Surpreso, indagou como conseguira o dinheiro.

— Guardei — respondeu encabulada.

Emocionou-se, apesar do esforço em contrário. Agarrou-a pelos braços e beijou-a.

Ela pensava que desaprendera de chorar. Lágrimas desciam pelo seu rosto. Era o primeiro beijo que recebia dele:

— Sou uma boba, não?

Faltava meia hora para a partida do trem, mas Pererico tinha pressa de embarcar, a fim de impedir novas cenas sentimentais.

Despediu-se com um abraço rápido e ia saindo, porém Galimene o reteve:

— Você voltará um dia, nem que seja para conhecer o mar, combinado?

Respondeu negativamente, e pesaroso por não saber mentir.

Subiu a escadinha do vagão de segunda classe, escolhendo o último banco para assentar-se. Nele colocou a maleta, indo direto às instalações. Após barbear-se, mudar de roupa, voltou a seu lugar.

Comia o frango. A espaços, olhava a paisagem através da janela. E se alegrou quando viu surgir nas encostas das montanhas os primeiros rebanhos.

À medida que contemplava bois e vacas pastando, retornavam-lhe antigas recordações, esmaeciam as do passado recente.

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