O Convidado - Murilo Rubião | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo O Convidado - Murilo Rubião | Conto Completo
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O Convidado - Murilo Rubião | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 14 mar. 2022
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"A notícia da presença de um falso convidado na festa circulara rápido."

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contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião


Vê pois que passam os meus breves anos, e eu caminho por uma vereda, pela qual não voltarei.
(Jó, XVI, 23)

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O convite que acabara de receber muito contrariava o seu gosto pelos detalhes. Além de não mencionar a data e o local da festa, omitia o nome das pessoas que a promoviam. Silenciava quanto ao traje das senhoras, apesar de exigir para os cavalheiros fardão e bicorne ou casaca irlandesa sem condecorações. A falta de outros esclarecimentos, julgou tratar-se de alguma festividade religiosa ou de insípida comemoração acadêmica.

José Alferes tornou a examinar o envelope, preocupado com a possibilidade de um equívoco ou de simples brincadeira de desocupados. — Mas a quem interessaria divertir-se à custa de um estranho em uma metrópole de cinco milhões de habitantes? — A ideia era evidentemente absurda, tendo-se em conta que o seu círculo de relações não excedia o corpo de funcionários do hotel, onde se encontrava hospedado havia quatro meses.

Pensou em jogar fora a carta, só não o fazendo ao lembrar-se de Débora, a estenógrafa, pensionista de um dos apartamentos no mesmo andar do seu. Poderia ser ela, sem dúvida, poderia. O talhe feminino da caligrafia autorizava essa suposição. Despreocupou-se das omissões do convite — coisa de mulher — para concentrar-se apenas nas formas sensuais da sua vizinha: ancas sólidas, seios duros, as pernas perfeitas.

Fizera diversas tentativas de abordá-la e fora repelido. Com um meio sorriso, uma frase reticente, olhava-o furtivamente e, sem virar-se para trás, sabia que Alferes ficara parado, o sangue fervendo, a acompanhar-lhe os passos por toda a extensão do corredor.



A janela do seu quarto dava para uma casa que alugava roupas destinadas a qualquer tipo de solenidade, bailes ou recepções. Mesmo com estoque variado, a sua freguesia era reduzida. Naquela manhã, entretanto, apresentava um movimento considerável de pessoas entrando e saindo, na maioria carregando embrulhos. Durante algum tempo, José Alferes observou sem grande interesse o que se passava no outro lado da rua. De súbito bateu a mão na testa, apressando-se em trocar o pijama pelo primeiro terno que encontrou no guarda-roupa. E, no embalo de repentina euforia, ensaiou um passo de dança abraçado a uma dama invisível que mais tarde poderia adquirir a solidez do corpo de Débora, porque já se convencera: a festa estava bem próxima. Se não, como explicar o procedimento de tanta gente alugando indumentárias especiais nessa época do ano, quando o calendário não indicava nenhuma festividade tradicional?

Ao entrar na loja, encontrou-a vazia. O único empregado da firma, um senhor idoso, atendeu-o. A agitação de Alferes não lhe permitiu ir direto ao assunto. Perguntou ao velho se tinha notícia de recepção ou algo parecido para aquela noite.

A resposta pouco o esclareceu: acreditava que sim, porém nada de positivo soubera pela boca dos fregueses atendidos na parte da manhã. Aconselhava-o a procurar Faetonte, o motorista de táxi do posto da esquina que era, no setor hoteleiro, o condutor habitual dos que procuravam divertimentos noturnos na cidade.

José Alferes percebeu que o seu interlocutor ocultava alguma coisa. Contudo preferiu não insistir. Tirou do bolso o convite e indagou se poderia conseguir um dos trajes nele sugeridos.

O homem relanceou os olhos pelos armários, reexaminou o papel, enrolou-o entre os dedos, limpou os óculos e, sem pressa, dirigiu-se aos fundos da loja, para reaparecer sobraçando umas vestes negras e um chapéu de plumas:

— Não é exatamente o exigido, mas servem.

Havia tal segurança na voz e nos modos do caixeiro que Alferes, mesmo vendo não ser bicórneo o chapéu, evitou contradizê-lo. A um sinal do outro, acompanhou-o a um cubículo revestido de espelhos.

Um pouco constrangido e desajeitado, ia experimentando as peças do vestuário, quase todas em seda preta: um gibão, calções, meias longas, sapatilhas e, para adornar o pescoço, rufos brancos engomados. Por último o espadim.

A carteira de dinheiro aberta, deteve-se um instante na contagem das notas que cobririam o pagamento do aluguel, procurando localizar algo perdido na memória.

— Não está satisfeito? — perguntou o velho, incomodado com o silêncio do cliente.

— Estou. Apenas tentava recompor a imagem de um rei antigo, com esta mesma roupa, numa gravura também antiga. Talvez um rei espanhol ou o retrato de um desconhecido.



De volta ao hotel, meteu-se novamente no pijama. Pediu o almoço no quarto e, fora de seus hábitos, recomendou um vinho estrangeiro, prelibando o encontro da noite. A custo refreou a vontade de telefonar para a estenógrafa. — Se a carta não vinha assinada — raciocinava — é que era desejo dela permanecer incógnita. Dada a natureza vacilante de Débora, um gesto precipitado seu poderia levá-la a negar qualquer participação na remessa do convite.

Conteve a impaciência, apesar do lento fluir do tempo. Aproveitou-o mais tarde para aprontar-se com amoroso cuidado, desde o banho, a água morna perfumada por essências, o ajeitar dos rufos, o esticar das meias compridas, eliminando as menores rugas. Os calções justos traziam-lhe certo desconforto e a figura refletida no espelho desagradava-lhe pelo aspecto sombrio. Sorriu ao pôr o chapéu: as plumas suavizavam um pouco a austeridade do vestuário. Entre um e outro pensamento, tentava relembrar onde vira alguém vestido do mesmo modo. Um rei espanhol ou um desconhecido?

Pairava no elevador um perfume vagamente familiar. Gostaria que pertencesse à sua vizinha e perguntou ao cabineiro se ela acabara de descer.

— A senhorita Débora viajou de férias ontem à tarde.

— Viajou? — A surpresa quase o desmontou da naturalidade que imprimira à pergunta. Sentia ruir os planos de um dia inteiramente construído para uma noite singular. O primeiro impulso foi de retornar ao apartamento e livrar-se daquele traje incômodo. Os gastos feitos, a dificuldade de substituir por outro o programa idealizado e principalmente o medo de cair no ridículo, se descobrissem ter sido convidado a participar de uma festa por uma mulher que viajara na véspera, fizeram-no prosseguir.

— Ah, sabia sim, tinha-me esquecido — desculpou-se. E deu ao ascensorista uma gorjeta maior que a de costume, como se ela o redimisse da decepção sofrida.



Não saberia explicar por que entre vários táxis no estacionamento escolhera exatamente o de Faetonte. Seria pelo uniforme incomum que envergava — uma túnica azul com alamares dourados e a calça vermelha? — Isso pouco importava. Já se acomodara no banco traseiro do carro.

— Calculo que o nosso destino é o bairro de Stericon, na parte nobre da cidade.

— Não estou certo — respondeu Alferes —, apenas sei que devo ir a uma recepção, para a qual exigem uma roupa igual a esta.

— Então é lá mesmo — retrucou o chofer, pondo o veículo em movimento.

Rodaram durante meia hora, passando por residências ricas, de arquitetura requintada ou de mau gosto. Detiveram-se ao deparar um sobrado mal iluminado e meio escondido por muros altos.

— Tem certeza que é neste lugar, Faetonte? — A ausência de outros automóveis em frente à casa e sua minguada iluminação justificavam seu ceticismo.

— Absoluta. Olha ali, é o porteiro se dirigindo ao nosso encontro.

De fato, na direção deles vinha um homem de terno azul e boina verde. Fez uma reverência exagerada, girando em seguida a maçaneta do carro:

— Tenha a bondade de descer, cavalheiro.

Alferes apreciou a deferência:

— Esta roupa atende às determinações do protocolo?

— Desculpe-me, minha função não vai a tanto. Fui encarregado somente de receber o convidado.

— Ótimo, assim as coisas tornam-se mais simples. Sou a pessoa que o senhor aguarda. — E mostrou-lhe o convite.

O porteiro pediu-lhe que esperasse: iria comunicar sua chegada ao comitê de recepção. Minutos depois retornava acompanhado de três senhores discretamente trajados. Moveram de leve as cabeças num cumprimento inexpressivo. Examinaram Alferes, do rosto ao vestuário, demonstrando visível insegurança pela dificuldade em reconhecer nele a pessoa esperada. Silenciosos, retrocederam alguns passos, para mais adiante fecharem-se em círculo, as mãos apoiadas nos ombros uns dos outros. Confabulavam.

Voltaram descontraídos e coube ao mais velho interpretar o pensamento dos três:

— Concordamos que o seu traje obedece às normas preestabelecidas e a autenticidade do convite é incontestável. Aliás, foi o único expedido através dos correios. Os demais convivas foram avisados pelo telefone. Apesar da evidência, o instinto nos diz que o nosso homenageado ainda está por chegar. Não podemos, todavia, impedir a entrada do senhor, mesmo sabendo de antemão os transtornos que a sua presença acarretará, pois muitos o confundirão com o verdadeiro convidado. À medida que isso aconteça, nos apressaremos em esclarecer o equívoco.



Entraram juntos por um corredor estreito e escuro. De repente, ao abrir-se uma porta larga, deram com um salão fartamente iluminado e repleto de pessoas conversando, rindo, enquanto os garçons serviam bebidas. Alferes foi empurrado de um lado para outro. Todas as vezes que alguém se encontrava frente a frente com ele, pedia-lhe desculpas, cumprimentava-o efusivamente. Os membros da Comissão intervinham, desfazendo o engano. Prosseguiram assim por outras salas, também cheias, repetindo-se os equívocos e os desmentidos.

A notícia da presença de um falso convidado na festa circulara rápido, o que permitiu a Alferes atravessar sem ser importunado os últimos salões e chegar aos fundos da casa. Uma leve brisa refrescou seu rosto alagado pelo suor. Vinha do parque, onde numerosas pessoas em trajes de passeio se reuniam em bandos dispersos entre árvores e bancos dos jardins. Estes se projetavam pela propriedade adentro, separados uns dos outros, a espaços regulares, por sebes de fícus cortadas em estreitas passagens.

Embora soubessem da delicada situação de José Alferes, ninguém o tratava a distância ou com hostilidade. Pelo contrário, procuravam cercá-lo de atenções, insistindo que se juntasse às alegres rodas, formadas de senhoras e cavalheiros excessivamente corteses. Mas logo ele se retraía e se afastava ante a impossibilidade de acompanhar os diálogos, que giravam em torno de um único e cansativo tema: a criação e corridas de cavalos.

Não ficava muito tempo sozinho. Dele se aproximavam outros participantes da reunião, dispostos a tudo fazer para interessá-lo em potrancas, baias, selins, charretes, puros-sangues. Ouvia-os enfadado, desde que nunca fora a hipódromos, fazendas e jamais montara sequer um burro. Tentava desviar a conversa, falando do homem esperado, aquele que daria sentido à recepção. Respondiam com evasivas: não o conheciam, ignoravam o seu aspecto físico, os motivos da homenagem. Sabiam, entretanto, que sem ele a festa não seria iniciada.

Sentado num banco de pedra, José Alferes sente aumentar sua irritação pelas lisonjas, as apresentações cerimoniosas, os gestos delicados. Rejeitava firme, às vezes duro, novas solicitações para aderir aos grupos de criaturas cativantes e vazias.

Acabara de repelir a investida de uns poucos inconformados com o seu isolamento, quando viu caminhar na sua direção uma bela mulher. Alta, vestida de veludo escuro, o rosto muito claro, o cabelo entre o negro e o castanho, parecia nascer da noite.

Vinha sorrindo, o copo de uísque na mão. Os seus olhos brilhavam como se umedecidos pela neblina que começava a cair.

— Vamos, tome. Nem tudo é ruim nesta festa — disse, estendendo-lhe o copo.

A voz agradável, os dentes perfeitos realçavam sua beleza, a crescer à medida que se aproximava:

— O seu nome todos sabem, o meu é Astérope.

Rendeu-se à espontaneidade dela, receando uma só pergunta, e esta veio:

— Costuma ir ao hipódromo?

Lamentou sua dificuldade em mentir ou contornar situações embaraçosas:

— Francamente, este é um assunto que me dá o maior tédio.

Encabulada, ela procurou disfarçar o desapontamento, indagando se ele gostaria de conhecer os jardins da casa. Sem esperar resposta, deu-lhe o braço:

— São lindos.

A Alferes escapavam as boas maneiras, daí a necessidade de penitenciar-se constantemente das frases bruscas, onde a intenção de ferir inexistia:

— Desculpe-me, não quis ofendê-la. Aqui se reúnem unicamente aficionados de cavalos?

— Simples coincidência, nada programamos nesse sentido.

O terreno era perigoso. Mudou rápido o curso da conversa:

— Você conhece o convidado?

Astérope olhou-o fixamente, como se pretendesse descobrir nele algo que ainda não decifrara:

— Vagamente, de referências. Vou conhecê-lo melhor hoje, na cama, pois dormiremos juntos.

— Um absurdo, você nem sabe quem é ele!

— Fui escolhida pela Comissão.

— Considero isso uma estupidez. E se for um homem doente, feio ou aleijado?

— Vale a pena correr o risco.

Além do desagrado de saber que mais tarde ela estaria deitada com outro, algo de inquietante emanava de Astérope. Da excessiva beleza ou do brilho dos olhos?



Foram varando jardins. Intranquilo, metido em dúvidas, Alferes ouvia desatento a companheira.

Por vezes, olhando em torno, achava o parque demasiado extenso. Calava a desconfiança, preocupado em descobrir se teria visto uma jovem senhora parecida com ela num quadro, folhinha ou livro.

Estacou. Aqueles jardins intermináveis, a sua incapacidade de falar a linguagem dos convivas, um convidado cuja ausência retardava a realização da festa. A beleza de Astérope. Agarrou-a pelos ombros, obrigando-a a encará-lo. Seria o brilho dos olhos?

Teve medo.

Retrocedeu apressadamente, fazendo o mesmo percurso de horas atrás, atropelando pessoas, empurrando-as. Todos desejavam segurá-lo, porém ele se desvencilhava dos obsequiosos cavalheiros e damas amáveis.

No final do corredor, o porteiro quis retê-lo e foi afastado com uma cotovelada.



Sentiu-se aliviado ao deixar para trás a atmosfera opressiva da recepção. Dentro de meia hora estaria no seu apartamento a contar os dias restantes das férias de Débora, mulher saudável, farta de carnes.

Quase nada enxergava porque neblinava forte. Cauteloso no pisar, dirigiu-se a um automóvel estacionado nas imediações, por sorte o de Faetonte.

Entrou rápido nele:

— Depressa, ao hotel.

— Lamento, pediram-me que aguardasse o convidado. Depois dele levarei os membros da Comissão, cabendo ao senhor a última viagem, entendido?

— Seu hipócrita! Você e essa corja de simuladores sabem que o convidado não virá nunca!

O chofer ignorou o desabafo do passageiro, retrucando delicadamente:

— Tenha paciência, estamos próximos ao acontecimento.

Alferes desceu do carro resmungando, disposto a enfrentar a cerração. Pelos seus cálculos, bastaria caminhar um quilômetro para chegar à parte mais habitada do bairro, onde encontraria condução fácil. Mal andara cem metros, as dificuldades começaram a surgir. Tropeçou no meio-fio, indo chocar-se contra um muro. Seguiu encostado a este durante curto espaço de tempo e logo as mãos feriram-se numa cerca de arame farpado. Afastando-se dela, teve a impressão de que se embrenhara num matagal. Daí por diante, perdeu-se. Ia da direita para a esquerda, avançava, retrocedia, arranhando-se nos arbustos.



Perdera o chapéu de plumas, a roupa rasgara-se em vários lugares, romperam-se as sapatilhas no calçamento irregular dos diversos sítios pelos quais passara.

Os pés sangravam. Aflito, buscando na escuridão luz de casa ou de rua que o orientasse, desequilibrou-se e rolou por um declive. Ao levantar-se, avistou bem próximo, frouxamente iluminado, o edifício que há pouco deixara.

O porteiro recebeu-o com a cordialidade cansativa dos que naquela noite tudo fizeram para integrá-lo num mundo desprovido de sentido. Alheio aos cumprimentos e mesuras, encaminhou-se direto a Faetonte, a quem procurou comover, mostrando-lhe o estado da roupa, o sangue coagulado nas feridas. Lacrimoso e subserviente, adulava o motorista, a ressaltar nele qualidades, virtudes inexistentes:

— Sei da sua bondade e o favor é pequeno, basta deixar-me no ponto do ônibus. Você volta rápido, a tempo de atender a seus compromissos.

Vendo que suas palavras não alcançavam o objetivo, partiu para o suborno. Ofereceu-lhe elevada soma em dinheiro. Faetonte recusou: permaneceria no local, aguardando as determinações da Comissão.

Corriam as horas, a neblina caindo, José Alferes renovava a espaços o oferecimento de gratificar generosamente o motorista pela corrida. A cada recusa, ele ia à porta de entrada, espiava para dentro do corredor, na ilusão de que aparecessem outras pessoas também cansadas de esperar inutilmente o início da festa e o guiassem até o centro da cidade.

Curvado, no seu desconsolo, já aceitava a ideia de retornar ao parque, quando lhe tocaram no braço. Assustou-se: era Astérope. Ela fingiu não perceber o temor estampado no rosto dele e arrastou-o consigo:

— Sei o caminho.

Saberia? — Dos olhos de Alferes emergiu avassaladora dúvida. Mas deixou-se levar.

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