A Diáspora - Murilo Rubião | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo A Diáspora - Murilo Rubião | Conto Completo
C O N T OLiteratura

A Diáspora - Murilo Rubião | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 13 mar. 2022
Compartilhar pelo FacebookCompartilhar por WhatsAppCitar este artigo

"Estavam tramando alguma coisa. Mas não o pegariam desprevenido. Conhecia de perto a astúcia dos que viviam do outro lado da montanha..."

Confira nossa lista de
contos de realismo fantástico
do autor Murilo Rubião


E eles saberão que eu sou o Senhor, quando eu os tiver espalhado entre as gentes, e os lançar dispersos por vários países.
(Ezequiel, XII, 15)

a diaspora murilo rubiao conto i

Desceram vagarosamente pela trilha sinuosa até alcançarem mais adiante o fundo do vale. Descansaram por algum tempo à beira de um riacho, permitindo que os animais se fartassem de água. Retomaram a viagem e subiram através da encosta íngreme. Ao chegarem à planura, no fim da tarde, os viajantes descarregaram as mulas, aliviando-as dos teodolitos, picaretas, pás, enxadas e provisões. Enquanto armavam as barracas, do meio deles se destacou um homem robusto. Dirigiu-se, resoluto, para um grupo de pessoas da aldeia que, de longe, observava a cena:

— Trago aqui — mostrava uma pasta preta — as ordens de serviço e toda a documentação necessária para executar o projeto.

— Isto não nos diz respeito e nada entendemos de documentos — responderam.

— Chamem, então, o chefe de vocês ou alguém que possa receber minhas credenciais.

— Aqui, em Mangora, não gostamos de chefes. Em todo o caso, converse com Hebron. Ele é quem sabe das coisas. E apontaram para um senhor idoso que vinha na direção deles.

O desconhecido esperou que o outro se aproximasse para apresentar-se:

— Sou Roque Diadema, o engenheiro. Fui encarregado de construir a ponte suspensa e estou satisfeito com as condições do terreno. Ademais, não necessitaremos de um prazo superior a dois anos para unir as duas margens, pois a garganta é mais estreita do que pensávamos.

O velho examinou sem pressa o maço de papéis que o estranho lhe entregara:

— Apesar de sermos contrários à construção de qualquer tipo de obra de arte no desfiladeiro, submeterei esta papelada à decisão dos companheiros.

— Penso que não me fiz entender — observou o visitante. — O que lhe mostrei decorre de um preceito legal e não precisa ser aprovado por mais ninguém.

— Também acho que não fui preciso — replicou Hebron. — Nada se faz aqui sem a concordância da maioria. O assunto será discutido amanhã. Desde já, convido-o, bem como a seus subordinados, a participar da reunião. E com direito a voto.



Todos compareceram, na tarde seguinte, ao adro da igreja, inclusive os forasteiros. Estes estranharam a ausência do padre e das autoridades civis.

Explicaram-lhes que prescindiam do clero para a celebração do culto e a ordem era mantida pela própria comunidade.

De acordo com as normas seguidas em assembleias destinadas a tratar de questões de interesse coletivo, permitiram a Roque Diadema justificar a sua pretensão.

Não logrando o orador convencer os presentes, ou a maior parte deles, a proposta foi recusada.

A impassibilidade com que o grupo vencido recebeu a derrota desconcertou o velho: estavam tramando alguma coisa. Mas não o pegariam desprevenido. Conhecia de perto a astúcia dos que viviam do outro lado da montanha.

Nem mesmo quando ao acampamento começaram a afluir com regularidade extensas caravanas de trabalhadores, trazendo consigo rolos de grossos fios de arame trançado, sacos de cimento e ferramentas, ele mostrou-se apreensivo. Apenas pediu a três de seus filhos — Zebulon, Sedoc e Ater — para anotarem o número dos desconhecidos, à medida que fossem chegando, e vigiassem de perto suas atividades.

Os operários, mal descarregavam a tropa, punham-se a trabalhar na pedreira ou na olaria, ao mesmo tempo que outros se encarregavam do empilhamento de pedras e tijolos.

Somente uma coisa deixava perplexos os moradores do lugar: por que todo aquele trabalho ordenado e paciente, se jamais lhes seria permitido iniciar as obras?

A Hebron não ocorriam semelhantes dúvidas. Tanto que, procurado pelo engenheiro, não se surpreendeu:

— Naturalmente o senhor deseja nova reunião?

— Sim, pois já temos os meios necessários para levar adiante o projeto da ponte.

Matreiro, o velho sorriu:

— O que decidimos anteriormente ainda prevalece. Não houve, daquela época para cá, nenhum acontecimento que justificasse uma mudança em nosso ponto de vista.

— E o aumento da população, não conta?

— Engana-se, não cresceu, entre nós, o número de pessoas em condições de votar, se considerarmos que os senhores estão de passagem, acampados em barracas, e nunca manifestaram vontade de residir aqui.

— No entanto, votamos da outra vez. Não entendo as razões de tão súbita mudança de comportamento.

— Falso. Não mudamos as regras. Permitimos que votassem, naquela ocasião, por cortesia, tratamento que raramente concedemos aos visitantes.

Diadema quis retrucar, porém se arrependeu e afastou-se. Se não convencido, pelo menos impassível.



A notícia da inesperada viagem do engenheiro e a paralisação das operações na pedreira e na olaria deram a muitos a certeza de que os obreiros teriam renunciado a seus planos e se preparavam para partir.

Após um mês de ausência, para desapontamento geral, Roque Diadema regressou. Fazia-se acompanhar de numerosa comitiva, onde predominavam os mecânicos, facilmente reconhecíveis por usarem macacões azuis.

Nos dias subsequentes, com a chegada incessante de levas maciças de homens, madeirame, peças e material pesado, os trabalhos no acampamento seriam intensificados ao máximo. E ganhariam em eficiência com a montagem, num dos flancos do desfiladeiro, de gigantescos guindastes, com a ajuda dos quais seriam içadas vigas de aço, viaturas e estranhas máquinas. Enquanto isso, na aldeia, o clima era de mal-estar e desconfiança. Não havia mais quem acreditasse que os intrusos se limitavam a acumular absurdas quantidades de material para nada.

Quando os obreiros começaram a construir as primeiras residências, os mangorenses, concentrados em frente à igreja, resolveram conter pela força a invasão das terras da comunidade. Pressentiam que chegara a hora de se livrarem dos forasteiros. Empunhando facões, machados, ancinhos, facas de cozinha, paus e toda a sorte de armas, exceto as de fogo, que não possuíam sequer uma, avançaram contra o acampamento.

Não encontraram resistência. Somente o engenheiro esperava-os. Surpresos por encontrar um único opositor pela frente, atenuaram a agressividade. Contudo, exigiram a imediata demolição das construções.

O ultimato não perturbou Roque Diadema. Buscou a pasta e dela retirou diversas escrituras.

— Aproveitei minha viagem para adquirir os terrenos. Sou hoje proprietário de dois terços da área urbana do povoado.

A vista das certidões, os mais exaltados emudeceram. Hebron, ainda que consciente da inutilidade do seu gesto, adiantou-se para apanhar os papéis:

— Não há dúvida — murmurou decepcionado —, os títulos de propriedade são legítimos.



Além de moradias, edificadas sem planejamento, os operários construiriam imenso galpão na parte traseira das barracas. Terminada a obra, o acesso principal da planura, por onde continuavam a chegar homens e material, ficaria totalmente encoberto, tornando inócua a vigilância que Zebulon e seus irmãos a li exerciam, desde os seus postos de observação.

Entrementes, o lugarejo crescia desordenadamente, as casas brotavam em todos os cantos, grimpando nos morros, dependurando-se nas ladeiras. Os veículos, antes sem uso, espalhavam a densa poeira que se acumulava nas ruelas irregulares.

O aparecimento de viaturas coincidiu com a chegada dos familiares dos obreiros. Vieram aos magotes e, apressados, ocuparam inacabados bangalôs e chalés.

Um odor fétido empestava o ar, vindo das residências desprovidas de esgoto canalizado ou fossas. A premência de se instalar na primeira habitação que encontrassem obrigava os recém-chegados a se despreocuparem do mínimo de conforto e higiene.

Naquele domingo, após a celebração do culto, os habitantes de Mangora conversavam sobre pequenos problemas que afetavam a comunidade, quando o mau cheiro, trazido pelo vento, invadiu a praça. A uma reação inicial de asco, os dedos a apertar as narinas, sucedeu-se a revolta. Os ânimos se exaltaram, clamou-se pela violência como meio de estancar a desordem reinante no lugar. Uns poucos, atentos à inferioridade numérica deles em relação ao adversário, optaram por soluções conciliadoras, logo repelidas com aspereza pelos demais.

No momento em que crescia a irritação, o ódio turvava os semblantes, Roque Diadema, sem avaliar o risco que corria, aproximou-se de um dos grupos, por sinal o mais violento:

— Muito bom encontrar vocês todos juntos. Desde que cumprimos as exigências que nos fizeram, só resta nos reunirmos fraternalmente para acertar nossas diferenças.

— Que exigências, que diferenças, seu trapaceiro?! Não faremos reunião alguma, nem vamos nos misturar com calhordas!

O engenheiro, de repente, viu-se empurrado, sacudido pelo paletó, o rosto cuspido. Aproveitou-se de uma brecha entre os agressores e escapuliu. Mais tarde, refeito do susto, ordenou a seus homens que iniciassem a construção da ponte.



Apanhado de surpresa pelos acontecimentos da véspera, Hebron recriminava-se por não ter procurado impedir que se rompesse a tradição de cada um expor livremente suas ideias. Mesmo assim, duvidava da eficácia da sua intervenção. A partir do dia em que confirmara a legitimidade das escrituras apresentadas por Diadema, percebeu que a sua liderança sobre os companheiros declinava. Olhavam-no com desconfiança e a sua companhia passou a ser evitada por todos. Nesse meio-tempo, perdeu regalias e funções. Até as de encarregado das compras no outro lado das montanhas, antes de sua exclusiva responsabilidade, foram delegadas a meia dúzia de rapazes inexperientes, escolhidos pela posição radical que mantinham contra a permanência dos forasteiros em Mangora. As viagens que, anteriormente, se verificavam de raro em raro, e destinadas à aquisição de sal, querosene e tecidos, tornaram-se mais frequentes do que exigiam as reais necessidades da população. As saídas e o regresso dos jovens efetuavam-se sob rigoroso sigilo, de preferência a horas mortas. Tomavam a precaução de retirar os cincerros dos pescoços das bestas e de envolver as mercadorias com folhas grossas de papel, prevenindo-se da possibilidade de serem surpreendidos por algum curioso ao descarregarem a tropa.

Tamanhos cuidados chamaram a atenção de Hebron, já intrigado pela indiferença que os mangorenses demonstraram ante o deslocamento das operações dos trabalhadores para as duas margens do desfiladeiro, à esquerda e um pouco atrás do antigo acampamento. Pareceram até zombar da eficácia e rapidez com que foram instalados novos guindastes e algumas betoneiras nas proximidades do local onde seriam assentadas as torres de sustentação dos cabos principais da ponte.



Vinte meses decorridos, podia-se prever para breve a conclusão das obras. A fase mais trabalhosa fora vencida, restava somente a montagem do passadiço. Roque Diadema experimentava pela primeira vez, naqueles anos em que exercitara à exaustão a sua capacidade de transigir e esperar, o gosto da vitória.

foto do autor

Autores Selecionados

Escritores, ensaístas e jornalistas em destaque





VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR

NUNCA PERCA UM POST