Um Antídoto contra o Fanatismo: O Decálogo de Bertrand Russell Comentado | Fantástica Cultural

Artigo Um Antídoto contra o Fanatismo: O Decálogo de Bertrand Russell Comentado

Um Antídoto contra o Fanatismo: O Decálogo de Bertrand Russell Comentado

Por Paulo Nunes ⋅ 21 fev. 2021
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Um olhar mais aprofundado sobre os famosos dez mandamentos do filósofo Bertrand Russell, em sua defesa ao pensamento crítico e ao espírito democrático.

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Para Bertrand Russell, a história da civilização é sempre moldada pela infindável oscilação entre dois males opostos: a tirania e a anarquia. Uma sociedade raramente pode prosperar sob a opressão e os dogmas irracionais das tiranias, mas tampouco o consegue em meio às crises e à instabilidade da anarquia. Segundo Russell, o equilíbrio adequado entre a ordem e o caos pode ser alcançado pelo liberalismo, ou democracia liberal.

Em seu famoso decálogo, publicado no The New York Times Magazine, em 1951, Russell apresentou uma lista de recomendações para a formação de indivíduos intelectualmente maduros, éticos e saudáveis, para benefício tanto dos próprios indivíduos quanto da sociedade formada por eles.

Os "dez mandamentos" de Russell foram propostos como um antídoto contra o fanatismo. Em essência, eles buscam reduzir o efeito dos preconceitos pessoas, instigar a autonomia intelectual, dissolver dogmas e ideias fixas, incentivar a investigação e a curiosidade, e promover a tolerância com ideias e crenças discordantes. E sendo um dos pensadores mais conhecidos e respeitados da história moderna, Russell parece saber do que está falando.

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Mas será mesmo?

Na verdade, vários dos pressupostos contidos no decálogo infelizmente estão incorretos. Ainda que as máximas em si incentivem posturas e comportamentos positivos, bem como uma mentalidade saudável e independente, a justificação usada para defendê-las nem sempre é verdadeira. Em especial nas últimas décadas, com o acirramento das guerras de narrativas travadas pelos agentes políticos da sociedade, alguns dos postulados de Russell precisariam ser drasticamente atualizados, enquanto outros parecem cada vez mais necessários.

Vejamos:

1) Não tenhas certeza absoluta de nada.

Essa é uma excelente recomendação. E para muitos é um desafio.

Não se trata, porém, de vivermos sem nenhuma certeza. Isso seria impossível. Boa parte de nossas ações é baseada em nossas crenças: temos relativa certeza de que o banco irá devolver nosso dinheiro quando tentarmos sacá-lo, por exemplo. Se duvidássemos de tudo, não conseguiríamos nem mesmo sair da cama, temendo que até o chão e as paredes fossem uma ilusão. O estresse com as incertezas seria intolerável.

O problema apontado por Russell são as certezas absolutas, as que não podem ser alteradas por meio de evidências. São aquelas crenças que nenhuma prova do mundo pode desfazer. Elas constituem um dos pilares do fanatismo. É quando uma pessoa recusa-se a aceitar a realidade, ou é incapaz de processá-la, ignorando as consequências reais de suas ações ou justificando-as por meio de fantasias.

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Manter uma certeza absoluta é julgar-se infalível. É crer que, apesar das limitações da cognição humana, as chances de se estar errado são zero. Podemos reconhecer nos fundamentalistas religiosos (dogmatismo) e nos militantes fanáticos (radicalismo) dois dos exemplos mais comuns dessa mentalidade. Ambos impõem sua interpretação da verdade sobre os demais, sem espaço para diálogo. E é bem conhecida a histórica trilha de sangue deixada por eles.

2) Não consideres que valha a pena proceder escondendo evidências, pois as evidências inevitavelmente virão à luz.

Parece desnecessário dizer, mas nem sempre as evidências vem à luz.

Um exemplo disso são as evidências relacionadas a crimes. Só para se ter uma ideia, a polícia norte-americana foi incapaz de resolver 54,5% dos crimes de violência e 82,4% dos roubos no ano de 2018. Às vezes, as evidências simplesmente se perdem, ou passam a ser ambíguas frente a contraevidências. Quem mente ou manipula dados pode muito bem ficar impune. E isso vale para pesquisas de eventos históricos, documentação de ações do governo, sonegação de impostos, abusos a direitos humanos, falsificações científicas...

E além dessa obviedade, há outro fator crucial: mesmo nos casos em que a verdade acaba vindo à tona, a mentira e a manipulação de evidências ainda podem ser muito vantajosas, e o ato pode muito bem ficar impune.

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Um exemplo recente é a tendência dos grandes jornais a manipular evidências para gerar notícias e manchetes mais polêmicas e tendenciosas, garantindo assim maior engajamento de seus leitores e maior lucro com os anúncios. A prática é tão comum que o impacto das evidências, quando vem à tona, é praticamente nulo. As empresas já lucraram, o interesse pelo tópico já passou, e quem aprovou a cobertura do jornal (devido às suas preferências políticas) não terá qualquer interesse em revisitar os fatos para talvez mudar de ideia.

E isso prova-se verdadeiro em muitas áreas. Líderes de movimentos, por exemplo, valem-se disso o tempo todo. Se um líder corrupto e mal-intencionado tentasse arrebanhar seguidores lhes dizendo a verdade, obviamente não conseguiria nenhum. Mas se ele mentir, esconder os fatos e torná-los fiéis, muitos continuarão a segui-lo mesmo depois de escutarem a verdade.

3) Nunca tentes desencorajar o pensamento, pois com certeza tu terás sucesso.

De fato. Como qualquer função do corpo, o raciocínio custa energia, principalmente quando requer que a mente saia de sua área de conforto. Nossas ideias e conhecimentos são formados por teias de conexões neurais, e pensar sempre as mesmas coisas é como transitar pelos caminhos já bem conhecidos e pavimentados; por outro lado, desfazer raciocínios ilógicos e adquirir novos conhecimentos e habilidades requer a manutenção dessas conexões neurais. Quanto menos se costuma pensar, maior será a resistência. Daí a tentação de reproduzir ideias alheias, evitando o cansativo filtro do senso crítico - abrindo as portas da mente para cavalos de Troia culturais (ou patógenos de ideias, como define o psicólogo evolucionista Gad Saad).

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E isso é trágico, porque nossas condições de existência são o produto de nossos raciocínios. A qualidade de vida humana depende de nossa eficiência lógica para lidar com os desafios da natureza. Da mesma forma, os valores éticos e aquilo que chamamos de justiça necessitam de uma coerência fundamental que apenas a razão é capaz de fornecer.

Estimular o raciocínio e a autonomia intelectual é uma das formas mais eficientes de empoderar um indivíduo e instrumentalizá-lo para lidar com os desafios do mundo. Porém, toda autonomia individual acarretará certa resistência do meio. Faz parte da dinâmica social.

4) Quando encontrares oposição, mesmo que seja de teu cônjuge ou de tuas crianças, esforça-te para superá-la pelo argumento, e não pela autoridade, pois uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória.

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Esse é outro caso em que Russell defende comportamentos éticos, mas sua justificação não é convincente. É perfeitamente possível, e muito comum, que conflitos sejam resolvidos por força de autoridade, através da "lei do mais forte", e não há nada de irreal ou ilusório nisso.

O problema aqui é que Bertrand Russell quer atribuir uma justificativa utilitária para um princípio ético. Mas a ética não pode ser defendida com base nas vantagens que lhe são associadas: se um indivíduo age de forma ética apenas pelas vantagens, e sua motivação, portanto, são essas vantagens, ele terá boa justificativa para agir de forma antiética quando esta for mais vantajosa.

De qualquer forma, o que Russell parece promover aqui é a liberdade individual frente aos poderes estabelecidos (princípio aplicável tanto a estruturas sociais, como o Estado, quanto a relações mais simples, como a familiar). Em tal contexto de liberdade, as ideias fluem socialmente através do debate, e as ações coletivas são decididas por meio do consenso, sem imposições autoritárias. Naturalmente, imaginar que tal contexto possa ser aplicado integralmente é uma utopia, mas para Russell, a sociedade deve buscar aproximar-se o quanto puder desse ideal.

5) Não tenhas respeito pela autoridade dos outros, pois há sempre autoridades contrárias a serem achadas.

Essa máxima baseia-se no mesmo princípio da anterior: a autoridade máxima para cada indivíduo deve ser seu próprio julgamento. Submeter-se a qualquer autoridade é, no fim das costas, o mesmo que submeter-se a outra pessoa exatamente como você; e isso é uma forma de transferência de poder.

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Por ser um liberal, e não um libertário, Russell certamente não estava argumentando pelo fim de hierarquias ou do Estado. O que ele parece estar promovendo aqui é o ceticismo em relação às autoridades em geral, mas apontando para as autoridades intelectuais em particular. Da mesma forma que na máxima anterior, a ideia é maximizar a autonomia de todos os indivíduos, incluindo a autonomia intelectual, bem como o incentivo ao pensamento crítico e à rejeição ao monopólio de ideias praticado por autoridades estabelecidas.

6) Não uses o poder para suprimir opiniões que consideres perniciosas, pois as opiniões irão suprimir-te.

Temos aqui o mesmo problema: uma recomendação ética amparada em uma afirmação falsa. No jogo do poder, não existe qualquer garantia de justiça. As opiniões silenciadas por Joseph Stalin na União Soviética, por exemplo, nunca chegaram a suprimi-lo (nem a ele, nem às suas próprias opiniões). E não só isso: suas ideias continuam sendo reproduzidas, e seus feitos continuam a ser celebrados por todo o mundo. São incontáveis os casos de governos autoritários cujos censores viveram e morreram impunes, no controle da narrativa cultural sobre "o que é verdade". Da mesma forma, ideias e opiniões são frequentemente condenadas ao aniquilamento.

É comum dizer-se que a verdade sempre vem à tona. Mas não há qualquer razão para se acreditar nisso.

7) Não tenhas medo de possuir opiniões excêntricas, pois todas as opiniões hoje aceitas foram um dia consideradas excêntricas.

Mensagem positiva, mas um tanto irresponsável.

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É esperado que mentes curiosas e criativas produzam opiniões excêntricas. Muitas destas opiniões virão a se normalizar no futuro, provando-se verdadeiras. Mas em toda sociedade há um limite de tolerância para ideias excêntricas, e cruzar este limite pode ser muito prejudicial ao indivíduo.

Pensadores como Galileu colocaram-se em grande perigo ao defenderem ideias opostas às crenças estabelecidas. Por toda a história, crenças e opiniões não ortodoxas foram causa de linchamentos, perseguições, torturas, aprisionamentos e execuções. Qualquer um que pense em peitar o sistema de ideais hegemônico deverá estar ciente das possíveis consequências.

Incentivar mentalidades originais, exploratórias e corajosas é algo positivo, é claro. Mas é recomendável certa prudência na exposição dessas ideias no âmbito social, pois meras opiniões podem ser acusadas de perigosas ou odiosas e levar a demissões, cancelamentos, banimentos, desmonetização, boicotes, recusa de prestação de serviços (incluindo bancários) e, em alguns casos, até cadeia. Alguns livres pensadores não terão qualquer problema em declarar abertamente todas as suas opiniões, prontos a sofrerem as consequências; mas essa é uma escolha de cada um, algo que só pode ser decidido quando se tem ciência das possíveis repercussões.

8) Encontra mais prazer em desacordo inteligente do que em concordância passiva, pois, se valorizas a inteligência como deverias, o primeiro será um acordo mais profundo que a segunda.

Não é possível sermos justos se não aceitamos perspectivas divergentes das nossas (mesmo as que julgamos objetivamente erradas). Mesmo nos casos mais drásticos de discordância, será sempre mais ético (e vantajoso) conter o conflito no nível do diálogo, respeitando o direito à autonomia de pensamento. E enquanto mantivermos o antagonismo restrito ao plano das ideias, a conciliação não apenas continuará sendo possível, mas será menos necessária, visto que é perfeitamente possível conviver com esse tipo de divergência.

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Assim, duas pessoas que concordam não revelam quase nada de si através dessa concordância, mas duas pessoas que discordam podem sinalizar muito de seu caráter ao serem capazes de lidar com as diferenças de forma civilizada e madura. Não à toa, as relações humanas mais fortes, duradouras e gratificantes não são aquelas em que não há conflito, mas aquelas em que os conflitos são superados com respeito e consideração pela individualidade do outro.

9) Sê escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois será mais inconveniente se tentares escondê-la.

Se formos escrupulosamente verdadeiros, teremos que apontar a imprecisão nessa máxima. Pois, como nos outros casos, não é verdadeiro que expressar a verdade seja sempre mais conveniente do que escondê-la.

Para quem discorda dos fatos, dizer a verdade é indistinguível de emitir uma opinião. Assim, vale aqui também a precaução, visto que dizer aos outros aquilo que eles não querem ouvir (sendo verdade ou não) pode trazer consequências sociais negativas, ou até mesmo graves.

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Mas se deixarmos de lado as exceções, essa nona máxima de Russell tende a gerar excelentes resultados. Antes de tudo, deve-se ser escrupulosamente verdadeiro para consigo mesmo. Até mesmo o vigarista mentiroso tirará melhor proveito de suas faculdades mentais se for capaz de pensar de forma lógica e precisa. Se nosso entendimento da realidade é como um mapa, cada distorção cognitiva pode significar uma montanha inesperada no caminho, ou um precipício que só percebemos quando já é tarde.

De todo modo, Russell parece referir-se especificamente à verdade que comunicamos aos demais. Pela ética, sabemos que mentir é reprovável. Já em termos utilitários, a grande vantagem de dizer a verdade, com precisão e consistência, são seus benefícios para a reputação do indivíduo: adquirir a confiança alheia é algo difícil, mas é fácil arruiná-la com um único sinal de desonestidade ou visão tendenciosa.

10) Não tenhas inveja daqueles que vivem num paraíso dos tolos, pois apenas um tolo o consideraria um paraíso.

Em outros palavras: não almeje o paraíso dos outros: para você, ele pode ser um inferno. É preciso dizer mais?

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foto do autor

Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador




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