Síndrome de Tinderela: A Ilusão das Opções Infinitas | Fantástica Cultural

Artigo Síndrome de Tinderela: A Ilusão das Opções Infinitas

Síndrome de Tinderela: A Ilusão das Opções Infinitas

Por Paulo Nunes ⋅ 7 set. 2022
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"Será que eu não estou desperdiçando meu tempo e minha vida com esta pessoa, quando uma outra poderia me fazer mais feliz?"

homens mulheres

Somos, hoje, 8 bilhões de habitantes neste planetinha Terra. Talvez você não cogite casar com um chinês ou um indiano, o que já corta boa parte deste número de possíveis parceiros — mas ainda assim, a quantidade de opções é extraordinária. E apesar de isso ser bom, por um lado, é também uma catástrofe.

Estamos vivendo algo absolutamente inédito na história humana. Na pré-história, por centenas de milhares de anos, homens e mulheres viviam em sociedades de aproximadamente 500 pessoas, e suas opções de parceiros estavam limitadas a este número. Com o florescer das civilizações, o limite passou a ser geográfico: até o século passado, as relações formavam-se dentro de círculos sociais, via amigos, contatos de trabalho, de estudo, de grupos religiosos, etc. As opções possíveis eram as pessoas geograficamente próximas e com algum elo social em comum. Com a conectividade permitida hoje pela internet, entretanto, os limites quase desapareceram.

its a match tinder

Isso, claro, faz as pessoas sonharem. Enquanto, no passado, homens e mulheres buscavam conquistar o parceiro mais atrativo dentro de sua rede de contatos (ou, às vezes, em bares ou clubes), hoje já se pode almejar uma relação Casava-se com o vizinho da rua de baixo — a vida era isso. com o homem ou mulher mais atrativo da cidade inteira, por meio de algum aplicativo de namoro. E Pedrinho já não compete apenas com seus colegas e vizinhos por uma namorada; ele precisa competir com milionários sarados com uma mansão e um iate.

Com Tinder, Badoo, Bumble, OkCupid, Happn, entre outros, as opções de parceiros são virtualmente infinitas. E digo "virtualmente" porque, é claro, o número é sempre limitado, ainda mais dependendo da região; mas considerando o tempo necessário para arranjar cada encontro, em geral é impossível aproveitar todas as opções possíveis.

Mulher e Pretendentes (Puck, 1879)
Mulher e Pretendentes (Puck, 1879)

Eis, então, o primeiro problema: quando as possibilidades são ilimitadas, haverá sempre o receio de que a pessoa escolhida não era a melhor opção. Quem sabe o outro match não seria um melhor parceiro? "Será que eu não estou desperdiçando meu tempo e minha vida com esta pessoa, quando uma outra poderia me fazer mais feliz?" E a tentação está sempre ali, na palma da mão.

Como consequência, torna-se mais comum um fenômeno apelidado de monkey brunching, referindo-se à ação dos macacos de se segurarem em um galho firme para poderem alcançar um mais alto — o que parece ser a estratégia de muitas pessoas (homens e mulheres), que mantêm um relacionamento indesejável apenas para não ficarem sozinhas até acharem o substituto. Outro termo usado é hipergamia, isto é, relacionar-se com indivíduos de status mais elevado, ou o desejo de fazê-lo.

Em épocas passadas, a sociedade tendia a incutir, muito mais do que a nossa, uma ideia de conformismo em relação ao destino pessoal. É como alguém que quer ter uma planta, mas a molha apenas uma vez a cada duas semanas, esquecendo-se com frequência de cuidá-la ou adubá-la. Ao perceber que a planta está feia e fraca, decide trocá-la por outra, pois sabe que há opções mais vistosas no mercado. Casava-se com o vizinho da rua de baixo — a vida era isso. As pessoas sabiam que almejar um relacionamento com uma top model, um ator ou atriz de cinema ou um bilionário era uma esperança irrealista, e fadada ao fracasso, para a maior parte da população. As expectativas estavam mais próximas da realidade atingível.

O excesso de conformismo, porém, levou as novas gerações a uma atitude inversa: o fenômeno de autoafirmação irrestrita e frequentemente ilusória do "você pode", "você merece". Apesar do lado positivo dessa postura (isto é, proporcionar ao indivíduo maiores chances de alcançar seu potencial e satisfazer seus desejos, transcendendo as limitações do ambiente e da sociedade), o lado negativo cobra seu preço: o narcisismo, o egocentrismo, o egoísmo, e todo o sofrimento que deriva das desilusões frente à dureza da realidade.

Arte de Joey Guidone
Arte de Joey Guidone

E a possibilidade de substituição do parceiro, devido à vastidão de alternativas, é uma pulga atrás da orelha que pode diminuir o comprometimento do indivíduo com seu par. Isso, obviamente, tende a sabotar a relação. A opção de saltar do navio ao primeiro problema sério é muito tentadora — o que leva a pessoa a investir menos no relacionamento, já antecipando a possibilidade da fuga.

Nesses casos, a confiança interna do casal tende a ser baixa. Pressente-se, pelos humores e indiretas, a ameaça constante do término. E temendo que os problemas que surgem causem o rompimento, o indivíduo pode vir a calar-se sobre questões importantes, sofrendo em silêncio para evitar que um diálogo necessário, mas desconfortável, possa levar o parceiro a desistir da relação.

E tudo isso, ao tornar o relacionamento menos satisfatório, raso e desconexo, só aumenta as chances do término.

É como alguém que quer ter uma planta, mas a molha apenas uma vez a cada duas semanas, esquecendo-se com frequência de cuidá-la ou adubá-la. Ao perceber que E o privilégio tem sexo também: segundo dados divulgados pelo Tinder, enquanto homens deram like em 61,9% dos perfis de mulheres exibidos no aplicativo, as mulheres deram like em apenas 4,5% dos perfis de homens. a planta está feia e fraca, decide trocá-la por outra, pois sabe que há opções mais vistosas no mercado. Essa atitude, replicada por toda a sociedade, funciona como uma fábrica de pessoas frustradas (e frustrantes).

Não é nova essa comparação entre esses relacionamentos descartáveis e a cultura consumista. Bauman teve a graça de chamar o fenômeno de relacionamentos líquidos, o que, infelizmente, concedeu certo ar de sofisticação e normalidade a uma tendência nociva — uma crise nas relações humanas, marcada por altos índices de depressão, uniões fracassados, solidão, neuroses e outros transtornos mentais, dependência química, dentre tantas outras consequências.

Arte de Javier Ruiz
Arte de Javier Ruiz

Boa parte do prazer em um relacionamento provém da satisfação de merecê-lo. Em uma relação em que nenhuma das partes se esforça, em que ninguém investe ou se dedica, conclui-se que ambos só estão juntos por comodismo ou falta de opção. O que não se conquista com mérito tende a não ter valor para nós — é como nossa psicologia funciona. Assim, quanto maior for o comprometimento com o projeto de vida do casal (que precisa vir de ambas as partes), maior será, de uma forma geral, sua satisfação com o relacionamento.

Agora, uma correção é necessária: as opções ilimitadas não são uma realidade para todos. O grupo que mais desfruta desse privilégio, por óbvio, são as pessoas atraentes, em especial as jovens. E o privilégio tem sexo também: segundo dados divulgados pelo Tinder, enquanto homens deram like em 61,9% dos perfis de mulheres exibidos no aplicativo, as mulheres deram like em apenas 4,5% dos perfis de homens.

charme

A diferença é brutal. Mas a razão é simples: na ausência de outros traços para julgar os homens, as mulheres focam na aparência, e são altamente seletivas, escolhendo somente perfis que poderiam ser de modelos ou atores de cinema (os chads). Já os homens estão muito mais abertos para mulheres de beleza mediana. Isso, porém, não lhes garante nenhum interesse em retorno. Assim, a abundância de opções restringe-se às mulheres de beleza mediana ou superior e aos homens pertencentes aos 80% mais atraentes (pelo menos no ambiente on-line).

80% dos homens menos desejáveis (em termos de atratividade) estão competindo por 22% das mulheres menos desejáveis e 78% das mulheres mais desejáveis estão competindo por 20% dos homens mais desejáveis (Worst-Online-Dater).

Para a maior parte dos homens, portanto, a infinidade de parceiras potenciais exibidas nos aplicativos de namoro é uma ilusão. Muitos não obtêm nenhum match, mesmo estando dispostos a aceitar uma ampla variedade de mulheres.

Arte de Frank Frazetta
Arte de Frank Frazetta

Já para as mulheres, o problema é outro. Como 78% delas estão disputando 20% dos homens, elas obviamente estão dividindo estes parceiros entre si. E apesar de que estes homens se relacionam com número impressionante de mulheres, apenas algumas poucas serão as escolhidas. As demais, em geral, irão se sentir usadas, e desiludidas; após se convencerem de que são capazes de atrair homens do mais alto nível (embora apenas para relações casuais), dificilmente irão se satisfazer com parceiros de menor status. Eis uma receita para eterna infelicidade: não aceitar menos do que aquilo que, no fundo, não está ao alcance.

E este é o estado do circo: nos EUA, por exemplo, "o número de jovens de 18 a 29 anos que relataram não ter feito sexo por mais de um ano mais que dobrou na última década" (dados publicados em 2019). Muitos deles permanecem virgens, e outros tantos, inteiramente incapazes de viver uma relação amorosa, passam a integrar a comunidade dos incels (involuntary celibates, "celibatários involuntários") ou dos MGTOW (men going their own way, "homens seguindo seu próprio caminho"). Esta, é claro, não é a realidade para todos, mas a tendência é crescente e preocupante.

E para as mulheres, resta a difícil decisão de escolher um parceiro, ou brincar de carrossel até que a idade já não lhe permita atrair parceiros aceitáveis. O perigo é que, a essa altura, já seja tarde demais para assegurar um relacionamento duradouro e de qualidade.

esqueleto deprimido

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Paulo Nunes

Escritor, editor, ilustrador e pesquisador



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