Os Nove Bilhões de Nomes de Deus - Arthur C. Clarke | Conto | Fantástica Cultural

Artigo Os Nove Bilhões de Nomes de Deus - Arthur C. Clarke | Conto
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Os Nove Bilhões de Nomes de Deus - Arthur C. Clarke | Conto

Autores Selecionados ⋅ 23 ago. 2022
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"Chame a isto um ritual se quiser, mas é uma da bases fundamentais da nossa religião. Os nomes de Ser Supremo, Deus, Júpiter, Jeová, Alá etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens."

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O doutor Wagner conseguiu reprimir-se. Era meritório. Depois disse:

— O seu pedido é um pouco desconcertante. Que eu saiba, é a primeira vez que um mosteiro tibetano faz a encomenda de um calculador eletrônico. Não quero ser curioso, mas estava longe de pensar que semelhante instituição pudesse necessitar desta máquina. Posso perguntar-lhe em que deseja utilizá-la?

O lama ajeitou as dobras de sua túnica de seda e pousou sobre a secretária a régua de calcular com a qual acabava de fazer conversões libra-dólar.

— Naturalmente. O seu calculador eletrônico tipo 5 pode fazer, segundo diz o catálogo, todas as operações matemáticas até 10 decimais. No entanto, o que me interessa são letras, não números. Pedir-lhe-ei portanto que modifique o circuito de saída de forma que imprima letras em vez de colunas de números.

— Não compreendo muito bem...

— Desde que a nossa instituição foi fundada, há mais de três séculos, que nos consagramos a um determinado trabalho. É um trabalho que pode parecer-lhe estranho e peço-lhe que me escute com a maior largueza de espírito.

— De acordo.

— É simples. Tentamos organizar a lista de todos os nomes possíveis de Deus.

— Perdão?

O lama continuou imperturbavelmente:

— Temos excelentes motivos para crer que todos esses nomes incluem quando muito nove letras do nosso alfabeto.

— E ocuparam-se disso durante três séculos?

— Sim. Tínhamos calculado que precisaríamos de quinze mil anos para terminar o trabalho.

O doutor deu um assobio de vencido, e disse um pouco atordoado:

— O.K., agora compreendo o porque deseja alugar uma das nossas máquinas. Mas qual é o objetivo da operação?

Durante uma fração de segundo o lama hesitou e Wagner receou ter ofendido aquele estranho cliente que acabara de fazer a viagem Lassa-Nova Iorque com uma régua de calcular e o catálogo da companhia de contadores eletrônicos no bolso de sua túnica cor de açafrão.

— Chame a isto um ritual se quiser — disse o lama — mas é uma da bases fundamentais da nossa religião. Os nomes de Ser Supremo, Deus, Júpiter, Jeová, Alá etc., não passam de etiquetas feitas pelos homens. Certas considerações filosóficas demasiado complexas para que as possa expor agora, deram-nos certeza de que, entre todas as perguntas e possíveis combinações das letras, se encontram os verdadeiros nomes de Deus. Ora, o nosso objetivo é descobri-los e escrevê-los todos.

— Já compreendo: Começam por A.A.A.A.A.A.A.A.A., e acabarão por chegar a Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.Z.

— Simplesmente utilizamos o nosso alfabeto. Evidentemente que lhe há de ser fácil modificar a máquina de escrever elétrica, de forma que ela utilize nosso alfabeto. Mas o problema mais importante será o de preparar os círculos especiais de forma que eliminem antecipadamente as combinações inúteis. Por exemplo, nenhuma das letras deve aparecer mais de três vezes sucessivamente.

— Três? Quer dizer duas.

— Não. Três. Mas a explicação completa exigiria muito tempo, mesmo que o senhor compreendesse a nossa língua.

Wagner disse precipitadamente:

— Claro, claro. Continue por favor.

— Ser-lhe-á fácil adaptar o calculador automático em função desse objetivo. Com um plano bem elaborado, uma máquina desse gênero pode trocar as letras umas após outras e imprimir um resultado. Desta forma, concluiu calmamente o lama, aquilo que nos levaria ainda quinze milênios estará terminado em cem dias.

O Doutor Wagner sentia que ia perdendo o sentido das realidades. Através das janelas do edifício, os ruídos e as luzes de Nova Iorque perdiam a intensidade. Sentia-se transportado a um mundo diferente. Lá longe, no seu longínquo asilo montanhoso, geração após geração, os monges tibetanos há trezentos anos elaboravam sua lista de nomes desprovidos de sentido? Não havia então limite para a loucura dos homens?

Mas o Doutor Wagner não devia deixar transparecer os seus pensamentos. O cliente tem sempre razão...

E respondeu:

— Não duvido que possam modificar a máquina do tipo 5, de forma a imprimir listas desse gênero. A instalação e a conservação é que mais me inquietam. Aliás, não será fácil enviá-la para o Tibete.

— Nós trataremos disso. As peças separadas têm dimensões suficientemente pequenas para serem transportadas por avião. De resto, foi esse o motivo porque escolhemos a máquina. Envie as peças para a Índia, nós nos encarregamos do resto.

— Deseja contratar dois dos nossos engenheiros?

— Sim, para montarem e vigiarem a máquina durante esses cem dias.

— Vou mandar instruções à direção de pessoal — disse Wagner enquanto escrevia na agenda. — Mas restam duas questões a resolver...

Antes que tivesse podido terminar a frase, o lama tirou do bolso uma delgada folha de papel:

— Esta é a situação de minha conta no Banco Asiático.

— Muito obrigado. Está muito bem... Mas, se me permite, a segunda questão é de tal maneira elementar que hesito em mencioná-la. Acontece muitas vezes esquecermos qualquer coisa evidente... Têm uma fonte de energia elétrica?

— Temos um gerador Diesel elétrico de 50 KW de potência, 110 volts. Foi instalado há cinco anos e funciona bem. Facilita-nos a vida no convento. Compramo-lo sobretudo para acionar os moinhos de orações.

— Ah! Sim, evidentemente, eu devia ter pensado nisso...

Do parapeito a vista era vertiginosa, mas habituamo-nos a tudo. Tinha decorrido três meses e George Hanley já não se importava com os seiscentos metros em vertical que separavam o mosteiro do quadriculado dos campos da planície. Apoiado sobre as pedras que o vento arredondara, o engenheiro contemplava com olhar triste as montanhas longínquas de que ignorava o nome. "A operação nome de Deus", como batizara um humorista da Companhia, era sem dúvida a pior tarefa de louco em que jamais participara.

Semana após semana, a máquina tipo 5, modificada, cobrira milhares de folhetos de uma incrível algaravia. Paciente e inexorável, o calculador reunira as letras do alfabeto tibetano em todas as combinações possíveis, esgotando série após série. Os monges recortavam certas palavras à saída da máquina de escrever elétrica e colavam-nas com devoção em enormes registros. Dentro de uma semana acabariam.

Hanley ignorava quais os cálculos obscuros que os levavam à conclusão de que não deviam estudar conjuntos de dez, vinte, cem mil letras, e nem pretendia sabê-lo. nos seus pesadelos sonhava às vezes que o grande lama decidiria bruscamente complicar um pouco mais a operação e que o trabalho continuaria até o ano 2060. Aliás aquele estranho homenzinho parecia perfeitamente capaz de o fazer.

A pesada porta de madeira estalou. Chuck vinha ter com ele no terraço. Chuck fumava, como de costume, um charuto: tornara-se popular com os lamas distribuindo-lhes havanas. Aqueles tipos poderiam ser completamente amalucados — pensou Hanley — mas não eram puritanos. As frequentes expedições a aldeia não tinham sido desprovidas de interesse...

— Ouve, George — disse Chuck — vamos ter aborrecimentos.

— A máquina escangalhou-se?

— Não.

Chuck sentou-se sobre o parapeito. Era espantoso, pois habitualmente receava ter vertigens:

— Acabo de descobrir o objetivo da operação.

— Mas já o sabíamos!

— Sabíamos o que os monges queriam fazer, mas não sabíamos por quê.

— Bah! São uns loucos...

— Escuta, George, o velho acaba de explicar-me. Eles creem que assim que tenham escrito todos aqueles nomes (e segundo pensam são cerca de nove bilhões), o objetivo divino será atingido. A raça humana terá realizado a tarefa para que foi criada.

— E então? Esperam que nos suicidemos?

— Inútil. Quando a lista estiver terminada, Deus intervirá e será o fim.

— Quando terminarmos, será então o fim do mundo?

Chuck teve um risinho nervoso:

— Foi o que eu disse ao velho. Ele olhou-me de forma estranha, como um professor olha para um aluno particularmente estúpido, e disse-me: "Oh, não será assim tão insignificante!..."

George refletiu por um instante.

— É um tipo que visivelmente tem ideias largas, mas, mesmo assim, que importância tem isso? Nós já sabíamos que eram uns loucos.

— Sim. Mas não vês o que pode acontecer? Se a lista ficar pronta e se as trombetas do anjo Gabriel, versão tibetana, não soarem, eles podem decidir que é por nossa culpa. Afinal de contas, era a nossa máquina que eles utilizavam. Não gosto disso...

— Percebo... — disse lentamente Jorge — mas eu já vi tanta coisa! — Quando era garoto na Luisiana, apareceu um pregador que anunciou o fim do mundo para o domingo seguinte. Houve centenas de tipos que acreditaram nele. Alguns mesmo chegaram a vender suas casas. Mas ninguém se endureceu no domingo seguinte. As pessoas pensaram que ele apenas errara um pouco os cálculos, e muitas delas ainda acreditam.

— Caso não te tenhas apercebido faço-te notar que não estamos na Luisiana. Estamos ambos sozinhos, no meio de centenas de monges. Adoro-os, mas preferia estar longe quando o velho lama aperceber-se que a operação falhou.

— Há uma solução. Uma pequenina sabotagem inofensiva. O avião chega dentro de uma semana e a máquina termina o trabalho dentro de quatro dias à razão de 24 horas por dia. Basta-nos começar a reparar qualquer coisa durante dois ou três dias. Se calcularmos bem, poderemos estar lá embaixo, no aeroporto, quando o último nome sair da máquina.

Sete dias mais tarde, enquanto os pequenos pôneis das montanhas desciam o caminho em espiral, Hanley disse:

— Sinto um pouco de remorsos. Não fujo por medo, mas porque tenho pena. Não gostaria de ver a cara daqueles pobres homens quando a máquina parar.

— Na minha opinião — disse Chuck — eles desconfiaram que fugimos, e não se incomodaram. Agora já sabem até que ponto a máquina é automática, e que não precisa de vigilância. E supõem que não haverá nenhuma depois.

George voltou-se para trás e olhou.

Os edifícios do mosteiro apareciam em silhueta escura sobre o poente. De vez em quando brilhavam pequeninas luzes sob a massa sombria das muralhas, como as vigias de um navio singrando no mar. Lâmpadas elétricas colocadas sobre o circuito da máquina n.º 5.

Que aconteceria ao calculador elétrico? — pensou George. — Na fúria e desapontamento iriam os monges destruí-lo? Ou então recomeçariam tudo?

Como de ainda lá estivesse, via o que naquele momento se passava na montanha atrás das muralhas. O grande lama e os seus assistentes examinavam as folhas, enquanto alguns noviços recortavam os nomes barrocos e os colavam no enorme caderno. e tudo aquilo era feito em religioso silêncio. Só se ouviam as teclas da máquina, batendo no papel como se fossem chuva miúda. O próprio calculador, que combinava milhares de letras por segundo, estava completamente silencioso...

A voz de Chuck interrompeu o seu devaneio:

— Lá está ele! Que grande alegria que dá!

Semelhante a uma minúscula cruz prateada, o velho avião de transportes D.C.3 acabava de pousar lá embaixo no pequeno aeródromo improvisado. Aquela visão dava vontade de beber um grande copo de uísque gelado. Chuck começou a cantar, mas depressa se calou. As montanhas não o encorajavam.

George consultou o relógio.

— Estaremos lá dentro de uma hora — disse. E acrescentou: — Pensas que o cálculo já terminou?

Chuck não respondeu e George levantou a cabeça. Viu o rosto de Chuck muito branco, voltado para o céu.

— Olha — murmurou Chuck.

George, por sua vez, levantou os olhos.

Pela última vez, por cima deles, na paz das alturas, uma a uma as estrelas começavam a extinguir-se...

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