William Wilson - Edgar Allan Poe | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo William Wilson - Edgar Allan Poe | Conto Completo
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William Wilson - Edgar Allan Poe | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 21 nov. 2020
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Sua réplica, que era perfeita imitação de mim mesmo, consistia em palavras e gestos, e desempenhava admiravelmente seu papel. O timbre era idêntico e seu sussurro tornou-se o verdadeiro eco do meu.

William Wilson, de Edgar Allan Poe

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Permiti que, por enquanto, me chame William Wilson. A página virgem, que agora se estende diante de mim, não precisa ser manchada com meu nome verdadeiro. Esse nome já foi por demais objeto de desprezo, de horror, de abominação para minha família. Não terão os ventos indignados divulgado a incomparável infâmia dele, até as mais longínquas regiões do globo? Oh! O mais abandonado de todos os proscritos! Não terás morrido para o mundo eternamente? Para suas honras, para suas flores, para suas douradas aspirações? E não está para sempre suspensa, entre tuas esperanças e o céu, uma nuvem espessa, sombria e sem limites?

Não quereria, mesmo que o pudesse, aqui ou hoje, reunir as lembranças de meus últimos anos de indizível miséria e de imperdoável crime. Você também pode gostar: Descubra mais contos e galerias de horror Essa época, esses últimos anos, atingiram súbita elevação de torpeza, cuja origem única é minha intenção atual expor. Tornam-se os homens usualmente vis, pouco a pouco. Mas de mim, num só instante, a virtude se desprendeu, realmente, como uma capa. Duma perversidade relativamente trivial, passei, a passadas de gigante, para enormidades maiores que as de Heliogábalo (Heliogábalo foi um imperador romano durante os anos de 218 a 222.

Criou uma reputação entre os seus contemporâneos como decadente e excêntrico.). Que oportunidade, que único acontecimento trouxe essa maldição é o que vos peço permissão para narrar. A morte se aproxima e a sombra que a antecede lançou sobre meu espírito sua influência suavizante. Anseio ao atravessar o vale lamacento, pela simpatia, ia quase dizer, pela compaixão, de meus semelhantes. De bom grado fá-los-ia acreditar que tenho sido, de algum modo, escravo de circunstâncias superiores ao controle humano. Desejaria que eles descobrissem para mim, entre os pormenores que estou a ponto de relatar, algum pequeno oásis de fatalidade, perdido num deserto de erros. Quereria que eles admitissem, o que não poderiam deixar de admitir, que, embora grandes tentações possam ter outrora existido, homem algum jamais, pelo menos, foi assim tentado antes, e certamente jamais assim caiu. E será, pois, por isso que ele jamais assim sofreu? Não teria eu, na verdade, vivido em sonho? E não estarei agora morrendo vítima do horror e do mistério da mais estranha de todas as visões sublunares?

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Descendo duma raça que se assinalou, em todos os tempos, pelo seu temperamento imaginativo e facilmente excitável. E desde a mais tenra infância dei prova de ter plenamente herdado o caráter da família. À medida que me adiantava em anos, mais fortemente se desenvolvia ele, tornando-se, por muitas razões, causa de sérias inquietações para os meus amigos e de positivo dano para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, afeito aos mais extravagantes caprichos e presa das mais indomáveis paixões. Espíritos fracos e afetados de enfermidades constitucionais da mesma natureza da que me atormentava, muito pouco podiam fazer meus pais para deter as tendências más que me distinguiam. Alguns esforços fracos e mal dirigidos resultavam em completo fracasso, da parte deles e, sem dúvida, em completo triunfo da minha. A partir de então, minha voz era lei dentro de casa e, numa idade em que poucas crianças deixaram as suas andadeiras fui abandonado ao meu próprio arbítrio, e tornei-me em tudo, menos de nome, o senhor de minhas próprias ações.

Minhas mais remotas recordações da vida escolar estão ligadas a uma grande e extravagante casa de estilo isabelino, numa nevoenta aldeia da Inglaterra, onde havia grande quantidade de árvores gigantescas e nodosas e onde todas as casas eram extremamente antigas. Na verdade, aquela venerável e vetusta cidade era um lugar de sonho e que excitava a fantasia. Neste instante mesmo sinto na imaginação o arrepio refrescante de suas avenidas intensamente sombreadas, respiro a fragrância de seus mil bosques e estremeço ainda, com indefinível prazer, à lembrança do som cavo e profundo do sino da igreja, quebrando a cada hora, com súbito e soturno estrondo, a quietação da atmosfera fusca, em que se embebia e adormecia o gótico campanário crenulado.

Retardar-me nas minudentes recordações das coisas escolares é talvez o maior prazer que me é dado experimentar, de certo modo. Imerso na desgraça como estou - desgraça, ai de mim! Demasiado real - merecerei perdão por procurar alívio, por mais ligeiro e temporário que seja, nessas poucas minúcias fracas e erradias. Aliás, embora extremamente vulgares e até mesmo ridículas em si mesmas, assumem na minha imaginação, uma importância adventícia, por estarem ligadas a uma época e lugar em que reconheço as primeiras advertências ambíguas do destino que veio depois tão profundamente ensombrecer-me. Deixai-me, pois, recordar.

A casa, como disse, era velha e irregular. Os terrenos eram vastos e um alto e sólido muro de tijolos, encimado por uma camada de argamassa e cacos de vidro, circundava tudo. Aquela muralha, semelhante à de uma prisão, formava o limite de nosso domínio; nossos olhos só iam além dele, três vezes por semana: uma, todos os sábados à tarde, quando, acompanhados por dois regentes, tínhamos permissão de dar curtos passeios em comum, por alguns dos campos vizinhos; e duas vezes, nos domingos, quando íamos, como em parada, da mesma maneira formalística, ao serviço religioso da manhã e da noite, na única igreja da aldeia. O pastor dessa igreja era o diretor de nossa escola. Com que profundo sentimento de maravilha e perplexidade tinha eu o costume de contemplá-lo, de nosso distante banco na tribuna, quando, com passo solene e vagaroso, subia ele ao púlpito! Aquele personagem venerando, com seu rosto tão modestamente benigno, com trajes tão lustrosos e tão clericalmente flutuantes, com sua cabeleira tão cuidadosamente empoada, tão tesa e tão vasta, poderia ser o mesmo que, ainda há pouco, de rosto azedo e roupas manchadas de rapé, fazia executar, de palmatória em punho, as draconianas leis do colégio? Oh! Gigantesco paradoxo, por demais monstruoso para ser resolvido!

A uma esquina da muralha maciça erguia-se, sombrio, um portão ainda mais maciço, bem trancado e guarnecido de ferrolhos de ferro, e arrematado por denteados espigões de ferro. Que impressões de intenso terror ele inspirava! Nunca se abria senão para as três periódicas saídas e entradas, já mencionadas; então, a cada rangido de seus poderosos gonzos, descobríamos uma plenitude de mistério, um mundo de solenes observações, ou de meditações ainda mais solenes.

O extenso recinto era de forma irregular, possuindo muitos recantos espaçosos, dos quais três ou quatro dos mais vastos constituíam o campo de recreio. Era plano e recoberto dum cascalho fino e duro. Lembro-me bem que não havia árvores, nem bancos, nem qualquer coisa semelhante.

Ficava, naturalmente, na parte posterior da casa. Na frente, estendia-se um pequeno jardim, plantado de buxo e outros arbustos, mas por entre aquela sagrada região só passávamos, realmente, em bem raras ocasiões, tais como a da primeira ida ao colégio, ou da saída definitiva, ou talvez quando com um parente ou amigo, tendo vindo buscar-nos, tomávamos alegremente o caminho da casa paterna, pelas férias do Natal ou do São João.

Mas a casa! Que curioso casarão era aquele! Para mim, um verdadeiro palácio de encantamentos! Não havia realmente fim para suas sinuosidades, era um nunca acabar de subdivisões incompreensíveis. Era difícil, em qualquer ocasião, dizer com certeza, se a gente estava em algum dos seus dois andares. De uma sala para outra era certo encontrarem-se três ou quatro degraus a subir ou a descer. Depois as subdivisões laterais eram inúmeras, inconcebíveis e tão cheias de voltas e reviravoltas, que as nossas ideias mais exatas, a respeito da casa inteira, não eram muito diversas daquelas com que imaginávamos o infinito. Durante os cinco anos de minha estada ali, nunca fui capaz de determinar com precisão em que remoto local estava situado o pequeno dormitório que me cabia, bem como a uns dezoito ou vinte outros estudantes.

A sala de aulas era a mais vasta da casa e do mundo, não podia eu deixar de pensar. Era muito comprida, estreita e sombriamente baixa, com janelas em ogiva e o forro de carvalho. A um canto distante e que inspirava terror, havia um recinto quadrado de oito ou dez pés, abrangendo o santuário, "durante horas", do nosso diretor, o Reverendo Dr. Bransby. Era uma sólida construção, de porta maciça e, a abri-la na ausência do Mestre-Escola, teríamos todos preferido morrer de um castigo cruel. Em outros ângulos, havia dois outros compartimentos idênticos, bem menos respeitados, é certo, mas mesmo assim motivadores de terror. Um era a cátedra do professor de "letras clássicas" e o outro, a do professor de "inglês e matemáticas". Espalhados pela sala, cruzando-se e entrecruzando-se, numa irregularidade sem fim, viam-se inúmeros bancos e carteiras, enegrecidos, velhos e gastos pelo tempo, horrivelmente sobrecarregados de montões de livros, manchados de dedos e tão retalhados de iniciais, de nomes por extenso, de grotescas figuras e outros numerosos lavores de faca, que haviam perdido inteiramente o pouco de forma original, que lhes poderia ter cabido, nos dias mais remotos. Um enorme pote d?água erguia-se a uma extremidade da sala, e na outra, um relógio de estupendas dimensões.

Encerrado entre as maciças paredes daquele venerável colégio, passei, todavia, sem desgosto ou tédio, os anos do terceiro lustro de minha vida. O cérebro fecundo da infância não exige um mundo exterior de incidentes, para com ele ocupar-se ou divertir-se, e a monotonia aparentemente triste de uma escola estava repleta de mais intensa excitarão que a que minha mocidade mais madura extraiu da luxúria, ou minha plena maturidade, do crime. Todavia, devo crer que meu primeiro desenvolvimento mental tivesse tido muito de extraordinário e mesmo muito de exagerado. Em geral, os acontecimentos da primeira infância raramente deixam uma impressão definida sobre os homens, na idade madura. Tudo são sombras cinzentas, recordações apagadas e imprecisas, indistinto amontoado de débeis prazeres e de fantasmagóricos pesares. Comigo tal não se deu. Devo ter na infância sentido, com a energia de um homem, o que agora encontro estampado na memória, em linhas tão vivas, tão fundas, tão duradouras como as marcações das medalhas cartaginesas.

Contudo, de fato - na realidade do mundo em que eu vivia -, quão pouco havia para recordar! O despertar pela manhã, as ordens à noite para dormir, o estudo e recitação das lições, os periódicos semiferiados e passeios, o campo de recreio, com seu barulho, seus jogos, suas intrigas, tudo isso, graças a uma feitiçaria mental, há muito esquecida, era de molde a envolver uma imensidade de sensações, um mundo de vastos acontecimentos, um universo de emoções variadas, de excitação, o mais apaixonado e impressionante. Oh! Le Bon temps, que ce siècle de fer!

Na verdade, o ardor, o entusiasmo, a imperiosidade de minha natureza depressa me tornaram um caráter assinalado entre meus colegas, e pouco a pouco, por gradações naturais, deram-me um ascendente sobre todos os que não eram muito mais velhos do que eu; sobre todos, com uma única exceção. Essa exceção encontrava-se na pessoa de um aluno que, embora não fosse parente, possuía o mesmo nome de batismo e o mesmo sobrenome que eu. Circunstância, de fato, pouco digna de nota, pois não obstante uma nobre linhagem, o meu era um desses nomes cotidianos que parecem, por direito obrigatório, ter sido, desde tempos imemoriais, propriedade comum da multidão. Nesta narrativa designei-me portanto, como William Wilson, título de ficção, não muito diferente do verdadeiro. Só meu xará, de todos os que, na fraseologia da escola, constituíam "nossa turma", atreveu-se a competir comigo nos estudos da classe, nos esportes e jogos do recreio, a recusar implícita crença às minhas afirmativas e submissão à minha vontade, e realmente a intrometer-se nos meus ditames arbitrários, em todos os casos possíveis. Se há na terra um despotismo supremo e absoluto é o despotismo de um poderoso cérebro juvenil, sobre o espírito menos enérgico de seus companheiros.

A rebeldia de Wilson era para mim fonte do maior embaraço; e tanto mais o era quanto, a despeito das bravatas com que, em público, eu fazia questão de tratá-lo e às suas pretensões, no íntimo sentia medo dele e não podia deixar de considerar a igualdade, que ele mantinha tão facilmente comigo, como uma prova de sua verdadeira superioridade, desde que me custava uma perpétua luta não ser sobrepujado. Todavia essa superioridade, ou mesmo essa igualdade, não era na verdade conhecida de ninguém, senão de mim mesmo; nossos companheiros, graças talvez a alguma cegueira inexplicável, nem mesmo pareciam suspeitar disso. Na verdade, sua competição, sua resistência e, especialmente, sua impertinente e obstinada interferência em meus propósitos, não se manifestavam exteriormente. Ele parecia ser destituído também da ambição que incita e da apaixonada energia de espírito, que me capacitava a superar. Poderia supor-se que, em sua rivalidade, ele atuava somente por um desejo estranho ele contradizer-me, espantar-irie, mortificar-me; embora ocasiões houvesse em que eu não podia deixar de observar, com uma sensação composta de maravilha, rebaixamento e irritação, que ele misturava a suas injúrias, seus insultos ou suas contradições, certa afetividade de maneiras, muito imprópria e seguramente muito desagradável. Só podia imaginar que essa singular conduta proviesse de uma presunção consumada que assumia os aspectos vulgares de patrocínio e proteção.

Talvez tivesse sido este último traço do procedimento de Wilson, conjugado com a nossa identidade de nome, o simples acaso de termos entrado na escola no mesmo dia, em que trouxe à baila a ideia de que éramos irmãos, entre as classes mais velhas do colégio, pois estas não indagavam usualmente, com bastante precisão, dos negócios das classes menores. Já disse antes, ou deveria ter dito, que Wilson não tinha parentesco com a minha família, nem no mais remoto grau. Mas, seguramente, se tivéssemos sido irmãos, deveríamos ter sido gêmeos, pois, após ter deixado o colégio do Dr. Bransby, vim a saber, por acaso, que o meu xará tinha nascido no dia 19 de janeiro de 1813; e isto é uma coincidência um tanto notável, por ser precisamente o dia do meu próprio nascimento.

Pode parecer estranho que, a despeito da contínua ansiedade que me causava a rivalidade de Wilson e seu intolerável espírito de contradição não pudesse eu ser levado a odiá-lo totalmente. Tínhamos, na verdade, uma briga quase todos os dias, na qual, concedendo-me publicamente a palma da vitória, ele, de certo modo, me obrigava a sentir que não fora eu quem a merecera; contudo, um senso de orgulho de minha parte e uma verdadeira dignidade da dele conservavam-nos sempre no que chamávamos "relações de cortesia", ao mesmo tempo que havia muitos pontos de forte identidade em nossa índole, agindo para despertar em mim um sentimento que talvez somente nossa posição impedisse de amadurecer em amizade. É difícil, na verdade, definir, ou mesmo descrever, meus reais sentimentos para com ele. Formavam uma mistura complexa e heterogênea; certa animosidade petulante, que não era ainda ódio, alguma estima, ainda mais respeito, muito temor e um mundo de incômoda curiosidade. Para o moralista, será necessário dizer, em acréscimo, que Wilson e eu éramos os mais inseparáveis companheiros.

Foi sem dúvida o estado anômalo das relações existentes entre nós que fez todos os meus ataques contra ele (e muitos eram francos ou encobertos) se converterem em ironias ou mera brincadeira (ferindo, embora sob o aspecto de simples troça), em vez de hostilidade mais séria e preconcebida. Mas minhas tentativas nesse sentido não eram, de modo algum, uniformemente bem-sucedidas, mesmo quando meus planos fossem os mais espirituosamente ideados, pois meu xará tinha muito, no caráter, daquela austeridade calma e despretensiosa que, embora goze a agudez de suas próprias pilhérias, não tem calcanhar de Aquiles e recusa-se absolutamente a ser zombada. Eu podia descobrir, na realidade, apenas um ponto vulnerável, e que, consistindo numa peculiaridade pessoal, nascida, talvez, de enfermidade orgânica, teria sido poupada por qualquer antagonista menos incapaz de revidar do que eu; meu rival tinha uma deficiência nos órgãos faciais ou guturais que o impedia de elevar a voz, em qualquer ocasião, acima de um sussurro muito baixo. Não deixei de tirar desse defeito todas as pobres vantagens que estavam em meu poder.

As represálias de Wilson eram de muitas espécies; e havia uma forma de sua virtual malícia que me perturbava além dos limites. Como sua sagacidade descobriu logo, de qualquer modo, que coisa tão insignificante me envergonhava, é questão que jamais pude resolver; mas, tendo-a descoberto, ele habitualmente me aborrecia com isso. Eu sempre sentira aversão a meu sobrenome vulgar e a meu comuníssimo, senão plebeu, prenome. Tais palavras eram veneno a meus ouvidos; e quando, no dia de minha chegada, um segundo William Wilson chegou também ao colégio, senti raiva dele por usar esse nome e sem dúvida antipatizei com o nome porque o usava um estranho, que seria causa de sua dupla repetição, que estaria constantemente na minha presença e cujos atos, na rotina comum das coisas da escola, deviam, inevitavelmente, em virtude da detestável coincidência, confundir-se com os meus.

O sentimento de vexame assim engendrado tornava-se mais forte a cada circunstância que tendesse a mostrar semelhança, moral ou física, entre meu rival e eu mesmo. Não tinha então descoberto o fato notável de sermos da mesma idade, mas via que éramos da mesma altura, e percebi que éramos, mesmo, singularmente semelhantes no contorno geral da figura e nos traços fisionômicos. Exasperava-me também o rumor, corrente nas classes superiores, de nosso parentesco. Numa palavra, nada podia perturbar-me mais seriamente (embora escrupulosamente escondesse tal perturbação) que qualquer alusão a uma similaridade de espírito, pessoa ou posição existente entre nós dois. Mas, na verdade, não tinha eu razão de acreditar que (com exceção da questão de parentesco e no caso do próprio Wilson) essa similaridade tivesse sido, alguma vez, assunto de comentários, ou mesmo fosse observada de algum modo pelos nossos colegas. Que ele a observasse em todas as suas faces e com tanta atenção quanto eu, era coisa evidente; mas que pudesse descobrir, em semelhantes circunstâncias, um campo tão frutuoso de contrariedades, só pode ser atribuído, como disse antes, à sua penetração fora do comum.

Sua réplica, que era perfeita imitação de mim mesmo, consistia em palavras e gestos, e desempenhava admiravelmente seu papel. Minha roupa era coisa fácil de copiar; meu andar e maneiras gerais foram, sem dificuldade, assimilados e a despeito de seu defeito constitucional, até mesmo minha voz não lhe escapava. Naturalmente, não alcançava ele meus tons mais elevados, mas o timbre era idêntico e seu sussurro característico tornou-se o verdadeiro eco do meu.

Não me atreverei agora a descrever até que ponto esse estranhíssimo retrato (pois não o podia com justiça chamar de caricatura) me vexava. Tinha eu apenas um consolo no fato de ser a imitação, ao que parecia, notada somente por mim e ter eu de suportar tão só o conhecimento e os sorrisos estranhamente sarcásticos de meu próprio xará. Satisfeito por ter produzido, no meu íntimo, o efeito desejado, parecia ele rir em segredo com a picada que me dera, e mostrava-se singularmente desdenhoso dos aplausos públicos que o êxito de seus mordazes esforços pudesse ter tão facilmente conquistado. Que a escola, realmente, não percebesse seu desígnio, nem notasse sua realização ou participação de seu sarcasmo, foi durante ansiosos meses, um enigma que eu não podia resolver. Talvez a gradação de sua cópia não o tornasse prontamente perceptível, ou, mais provavelmente, devia eu minha segurança ao ar dominador do copista, que, desdenhando a letra (coisa que os espíritos obtusos logo percebem numa pintura), dava apenas o espírito completo de seu original, para meditação minha, individual, e pesar meu.

Já falei, mais de uma vez, do desagradável ar de proteção que ele assumia para comigo e de sua frequente intromissão oficiosa na minha vontade. Essa interferência tomava, muitas vezes, o caráter desagradável dum conselho; conselho não abertamente dado, mas sugerido ou insinuado. Recebia-o com uma repugnância que ganhava forças à medida que eu ganhava idade. Entretanto, naquela época já tão distante, quero fazer-lhe a simples justiça de reconhecer que não me recordo dum só caso em que as sugestões de meu rival tivessem participado daqueles erros ou loucuras tão comuns na sua idade, ainda carente de maturidade e de experiência; seu senso moral, pelo menos, se não seu talento geral e critério mundano, era bem mais agudo do que o meu, e eu poderia, hoje, ter sido um homem melhor e, portanto, mais feliz, se não tivesse tão frequentemente rejeitado os conselhos inclusos naqueles significativos sussurros, que só me inspiravam, então, ódio cordial e desprezo amargo.

Sendo assim, afinal me tornei rebelde ao extremo à sua desagradável vigilância e cada dia mais e mais abertamente detestei o que considerava sua insuportável arrogância. Já disse que, nos primeiros anos de nossas relações, como colegas, meus sentimentos com referência a ele poderiam ter-se amadurecido facilmente em amizade; mas, nos últimos meses de minha estada no colégio, embora seus modos habituais de intrusão tivessem diminuído, fora de dúvida, algum tanto, meus sentimentos, em proporção quase semelhante, possuíam muito de positivo ódio. Certa ocasião ele o percebeu, creio, e depois disso evitou-me, ou fingiu evitar-me.

Foi mais ou menos na mesma ocasião, se bem me lembro, que, numa violenta altercação com ele, em que se descuidou mais do que de costume e falou e agiu com uma franqueza de maneiras bem estranhas à sua índole, descobri, ou imaginei ter descoberto, em sua pronúncia, na sua atitude, no seu aspecto geral, algo que a princípio me chocou e depois me interessou profundamente, por me relembrar sombrias visões de minha primeira infância; tropel confuso e estranho de recordações de um tempo em que a própria memória ainda não nascera. Não posso descrever melhor a sensação que então me oprimiu do que dizendo que com dificuldade me era possível afastar a crença de haver conhecido aquele ser diante de mim, em alguma época muito longínqua, em algum ponto do passado, ainda que infinitamente remoto. A ilusão, porém, desvaneceu-se rapidamente como chegara; e a menciono, tão só, para assinalar o dia da última conversação que ali mantive com meu singular homônimo.

A enorme e velha casa, com suas incontáveis subdivisões, tinha vários e amplos aposentos que se comunicavam uns com os outros e onde dormia o maior número dos estudantes. Havia, também (como necessariamente deve suceder em edifícios tão desastradamente planejados), muitos recantos ou recessos, as pequenas sobras da estrutura; e deles a habilidade econômica do Dr. Bransby havia também feito dormitórios; contudo, como não passavam de simples gabinetes, apenas eram capazes de acomodar uma só pessoa, um desses pequenos apartamentos era ocupado por Wilson.

Uma noite, depois do encerramento de meu quinto ano na escola e imediatamente após a altercação acima mencionada, verificando que todos se imergiam no sono, levantei-me da cama, e, de lâmpada na mão, deslizei através de uma imensidade de estreitos corredores, do meu quarto para o de meu rival. Longamente planejara uma dessas peças de mau gosto, à custa dele, em que até então eu tão constantemente falhara. Era, agora, minha intenção pôr o plano em prática e resolvi fazê-lo sentir toda a extensão da malícia de que eu estava imbuído. Tendo alcançado seu quartinho, entrei silenciosamente, deixando a lâmpada do lado de fora, com um quebra-luz por cima. Avancei um passo e prestei ouvidos ao som de sua respiração tranquila. Certo de que ele estava dormindo, voltei apanhei a luz e com ela me aproximei de novo da cama. Cortinados fechados a rodeavam; prosseguindo em meu plano, abri-os devagar e quietamente, caindo então sobre o adormecido, em cheio, os raios brilhantes de luz, ao mesmo tempo que meus olhos sobre seu rosto. Olhei: e um calafrio, uma sensação enregelante no mesmo momento me atravessou o corpo. Meu peito ofegou, meus joelhos tremeram, todo o meu espírito se tornou presa de um horror imotivado, embora intolerável. Arquejando, baixei a lâmpada até quase encostá-la no seu rosto. Eram aquelas, aquelas, as feições de William Wilson? Vi, de fato, que eram as dele, mas tremi como num acesso de febre, imaginando que não o eram. Que havia em torno delas para me perturbarem desse modo? Contemplei, enquanto meu cérebro girava com uma multidão de pensamentos incoerentes. Não era assim que ele aparecia - certamente não era assim - na vivacidade de suas horas despertas. O mesmo nome! Os mesmos traços pessoais! O mesmo dia de chegada ao colégio! E, depois, sua obstinada e incompreensível imitação de meu andar, de minha voz, de meus costumes, de meus gestos! Estaria, em verdade, dentro dos limites da possibilidade humana, que o que eu então via fosse, simplesmente, o resultado da prática habitual dessa imitação sarcástica? Horrorizado, com um tremor crescente, apaguei a lâmpada, saí silenciosamente do quarto e abandonei imediatamente os salões daquele velho colégio, para neles nunca mais voltar a entrar.

Depois de um lapso de alguns meses, passados em casa em mera ociosidade, vi-me como estudante em Eton. Esse curto intervalo fora suficiente para enfraquecer em mim a recordação dos acontecimentos no colégio do Dr. Bransby, ou, pelo menos, para efetuar uma radical mudança na natureza dos sentimentos com que eu os relembrava. A verdade - a tragédia - do drama não existia mais. Eu achava, agora, motivos para duvidar do testemunho de meus sentidos; e muitas vezes recordei o assunto, unicamente e apenas admirando a extensão da credulidade humana e com um sorriso para a viva força de imaginação que eu possuía por herança. Nem era essa espécie de ceticismo capaz de ser diminuída pela natureza da vida que eu levava em Eton. O vórtice de loucura impensada, em que ali tão imediata e irrefletidamente mergulhei, varreu tudo, exceto a espuma de minhas horas passadas, abismou imediatamente todas as impressões sólidas e sérias, e só deixou na memória as leviandades de uma existência anterior.

Não desejo, contudo, traçar o curso de meu miserável desregramento ali - um desregramento que desafiava as leis, ao mesmo tempo que iludia a vigilância do instituto. Três anos de loucura, passados sem proveito, apenas me deram os hábitos arraigados do vício e um acréscimo em grau algo anormal, à minha estatura física. Foi quando, depois de uma semana de animalesca dissipação, convidei um pequeno grupo dos mais dissolutos estudantes para uma bebedeira secreta, em meu quarto. Encontramo-nos a horas tardias da noite, pois nossas orgias deviam prolongar-se, religiosamente, até a manhã. O vinho corria à vontade, e não haviam sido esquecidas outras e talvez mais perigosas seduções; assim, a plúmbea aurora já aparecera debilmente no oriente quando nossa delirante extravagância estava no auge. Loucamente excitado pelo jogo e pela bebida, eu estava a insistir num brinde de profanação mais do que ordinária, quando minha atenção foi subitamente desviada pelo abrir-se da porta do aposento, parcial embora violentamente, e pela voz apressada de um criado lá fora. Disse ele que alguém, aparentemente com grande pressa, queria falar comigo no vestíbulo.

Sob a selvagem excitação do vinho, a inesperada interrupção mais me deleitou do que surpreendeu. Saltei para a frente imediatamente e poucos passos me levaram ao vestíbulo do prédio. Nessa sala pequena e baixa não havia uma lâmpada; e nenhuma luz, de modo algum, ali penetrava, a não ser a excessivamente fraca do alvorecer, que se introduzia por uma janela semicircular. Ao transpor os batentes distingui o vulto de um jovem mais ou menos de minha própria altura, vestido com um quimono matinal de casimira branca, cortado à moda nova do mesmo que eu trajava no momento. A fraca luz habilitou-me a perceber isto, mas não pude distinguir as feições de seu rosto. Depois que entrei, ele precipitou-se para mim, e, agarrando-me o braço com um gesto de petulante impaciência, sussurrou ao meu ouvido as palavras "William Wilson".

Em um segundo minha embriaguez se desvaneceu.

Havia algo no modo do desconhecido, e no gesto trêmulo de seu dedo levantado quando ele o pôs entre meus olhos e a luz, que me encheu de indefinível espanto; não foi, porém, isso o que me comoveu tão violentamente. Foi a concentração de solene advertência na pronúncia singular, baixa, silvante; e, acima de tudo, foi o caráter, o tom, a chave daquelas poucas sílabas, simples e familiares, embora sussurradas, que vieram com mil atropelantes recordações dos dias idos e me agitaram a alma como o choque de uma bateria elétrica. Logo que pude recuperar o uso de meus sentidos, ele já havia partido.

Embora esse acontecimento não deixasse de ter um vivo efeito sobre a minha imaginação desordenada, foi ele, contudo, tão fugaz quanto vivo. Durante algumas semanas, na verdade, eu me entreguei a ansiosas pesquisas, ou me envolvi numa nuvem de mórbidas investigações. Não pretendi disfarçar, em minha percepção, a identidade do singular indivíduo que tão perseverantemente interferia em meus assuntos e me perseguia com seus conselhos insinuados. Mas quem era esse Wilson? E donde vinha ele? E quais eram suas intenções? Não pude obter satisfatória resposta a qualquer desses pontos, verificando simplesmente, em relação a ele, que um súbito acidente em sua família provocara sua saída do colégio do Dr. Bransby, na tarde do dia em que eu fugira de lá. Mas, em breve tempo, deixei de pensar no caso, estando com a atenção completamente absorvida por uma projetada ida para Oxford. Ali logo cheguei... pois a irrefletida vaidade de meus pais me fornecia uma grande pensão anual que me habilitava a entregar-me ao luxo já tão caro a meu coração, rivalizando, em profusão de despesas, com os mais elevados herdeiros dos mais ricos condados da Grã-Bretanha.

Excitado ao vício por tais recursos, meu temperamento natural irrompeu com redobrado ardor e espezinhei mesmo as comuns restrições da decência, na louca paixão de minhas orgias. Mas seria absurdo narrar, em pormenores, as minhas extravagâncias. Bastará dizer que, em dissipações, ultrapassei Herodes e que, dando nome a uma multidão de novas loucuras, acrescentei um apêndice nada curto ao longo catálogo dos vícios então habituais na mais dissoluta universidade da Europa.

Dificilmente pode ser crido, contudo, que eu tivesse, mesmo ali, caído tão completamente da posição de nobreza a ponto de procurar conhecer as artes mais vis dos jogadores profissionais, tornando-me adepto dessa desprezível ciência, a ponto de praticá-la habitualmente como um meio de aumentar minha já enorme renda, à custa de meus colegas fracos de espírito. Tal sucedeu, não obstante. E a própria enormidade desse atentado, contra todos os sentimentos viris e probos evidenciava, fora de dúvida, a principal, senão a única, razão de ser ele cometido. Quem, na verdade, entre meus mais dissolutos companheiros, não teria duvidado do mais claro testemunho de seus sentidos, de preferência a ter suspeitado de que agisse assim o alegre, o franco, o generoso William Wilson, o mais nobre e o mais liberal dos camaradas de Oxford, aquele cujas loucuras (diziam seus parasitas) eram apenas as loucuras da imaginação jovem e desenfreada, cujos erros eram apenas caprichos inimitáveis e cujos vícios mais negros eram apenas uma extravagância descuidada e magnífica?

Fazia dois anos que eu me ocupava desse modo, com amplo sucesso, quando chegou à universidade um jovem, parvenu (Pessoa que atingiu súbita riqueza e/ou posição social de proeminência, sem, no entanto, ter adquirido os modos considerados adequados.) de nobreza, Glendenning, rico, dizia-se, como Herodos e Ático, e de riqueza adquirida com igual facilidade. Logo verifiquei que era de intelecto fraco e, naturalmente, marquei-o como um digno objeto para minha astúcia. Frequentemente levei-o a jogar, e fiz com que ele ganhasse, de acordo com a arte usual dos jogadores profissionais, somas consideráveis, para de modo eficiente prendê-lo em minha teia. Afinal, estando maduros meus planos, encontrei-o (com a plena intenção de que esse encontro seria final e decisivo) no aposento de um colega (Sr. Preston), igualmente íntimo de nós ambos, mas que, para fazer justiça, não tinha sequer a mais remota suspeita de meu desígnio. Para dar ao caso melhor colorido, consegui reunir um grupo de oito ou dez e tive o mais estrito cuidado em que o aparecimento de cartas de baralho fosse acidental, originando-se da proposta de minha própria vítima em vista. Para ser breve sobre tão vil tópico, nenhuma das baixas espertezas, tão habituais em ocasiões similares, foi omitida, e é mesmo motivo de admiração haver tantas pessoas ainda tão tolas para caírem como suas vítimas.

Prolongamos a vigília pela noite a dentro, e afinal efetivei a manobra de deixar Glendenning como meu único antagonista. O jogo, aliás, era o meu favorito de cartas. Os restantes do grupo, interessados na extensão de nossas apostas, abandonaram suas próprias cartas e ficaram em volta, como espectadores. O parvenu, que fora induzido, por meus artifícios, no primeiro período da noite, a beber abundantemente, agora baralhava, cortava ou jogava com estranho nervosismo de maneiras, para o qual sua embriaguez, pensava eu, podia parcialmente, mas não inteiramente, servir de explicação. Em período muito curto ele se tornara meu devedor de uma grande soma; então, tendo tomado um trago avultado de vinho do Porto, fez precisamente o que eu estivera prevendo: propôs dobrar nossa já extravagante parada. Com bem fingida mostra de relutância e não sem que minhas repetidas recusas o levassem a amargas palavras, que deram um tom de desafio a meu consentimento, aceitei afinal. O resultado, naturalmente, apenas demonstrou quanto a presa estava em minha teia: em menos de uma hora ele quadruplicara sua dívida. Desde algum tempo seu rosto perdera a tintura alegre que lhe dava o vinho; agora, porém, para meu espanto, percebi que ele se tornava de um palor verdadeiramente horrível. Para meu espanto, digo. Glendenning fora apresentado, em meus intensos inquéritos, como imensamente rico; e as quantias que ele até então perdera, embora em si mesmas vastas, não podiam, supunha eu, aborrecê-lo muito seriamente, e muito menos afligi-lo tão violentamente. A ideia de que ele estava perturbado pelo vinho que acabara de tragar foi a que mais prontamente se me apresentou; e, mais para defender meu próprio caráter aos olhos de meus companheiros do que por qualquer motivo menos interesseiro, eu estava a ponto de insistir, peremptoriamente, para cessarmos o jogo, quando certas expressões saídas dentre o grupo junto de mim e uma exclamação demonstrativa de extremo desespero da parte de Glendenning deram-me a compreender que eu causara sua ruína total sob circunstâncias que, tornando-o um motivo de piedade para todos, deveriam tê-lo protegido dos malefícios mesmo de um demônio.

Qual podia ter sido então minha conduta é difícil dizer. A lastimável situação de minha vítima atirara sobre tudo um ar de embaraçosa tristeza; e, durante alguns momentos, foi mantido um profundo silêncio, durante o qual eu não podia deixar de sentir minhas faces formigarem sob os numerosos olhares queimantes de desprezo ou reprovação que me lançavam os menos empedernidos do grupo. Confessarei mesmo que um intolerável peso de angústia foi retirado por breves instantes de meu peito, pela súbita e extraordinária interrupção que se seguiu. Os pesados e largos batentes da porta do aposento escancararam-se, duma só vez, com tão vigorosa e impetuosa violência que apagou, como por arte mágica, todas as velas da sala. Ao morrerem as luzes, pudemos ainda perceber que um estranho havia entrado, mais ou menos de minha altura e envolto apertadamente numa capa. A escuridão, porém, não era total; e podíamos apenas sentir que ele estava entre nós. Antes que qualquer de nós pudesse refazer-se do extremo espanto em que aquela violência nos tinha lançado, a todos, ouvimos a voz do intruso.

- Cavalheiros - disse ele, num sussurro baixo, distinto e inesquecível, que me fez estremecer até a medula dos ossos -, cavalheiros, peço desculpas desse meu modo de proceder, porque, assim agindo, estou cumprindo um dever. Não estais, sem dúvida, informados do verdadeiro caráter da pessoa que esta noite ganhou no écarté uma soma enorme de Lorde Glendenning. Vou, pois, propor-vos um plano expedito e decisivo de obterdes essa informação, verdadeiramente necessária. Tende a bondade de examinar, à vontade, o forro do punho de sua manga esquerda e os vários pacotinhos que podem ser achados nos bolsos um tanto vastos de seu roupão bordado.

Enquanto ele falava, tão profundo era o silêncio, que se poderia ouvir um alfinete cair no soalho. Ao terminar, partiu sem demora, e tão violentamente como havia entrado. Poderei eu descrever minhas sensações? Devo dizer que senti todos os horrores dos danados? Por certo, tinha eu muito pouco tempo para refletir. Muitas mãos me agarraram brutalmente, no mesmo instante, e reacenderam-se lego em seguida as luzes. Seguiu-se uma busca. No forro de minha manga foram encontradas todas as figuras essenciais do écarté, e, nos bolsos de meu roupão, certo número de baralhos, exatamente iguais aos que utilizávamos em nossas reuniões, com a única exceção de que os meus eram da espécie chamada, tecnicamente, arredondados, sendo as cartas de figuras levemente convexas nas pontas e as cartas comuns levemente convexas nos lados. Com esta disposição, o ingênuo que corta, como de costume, ao comprido do baralho, invariavelmente é levado a cortar dando uma figura a seu parceiro, ao passo que o jogador profissional, cortando na largura, com toda a certeza nada cortará para sua vítima que possa servir de vantagem no desenrolar do jogo.

Uma explosão de indignação ter-me-ia afetado menos do que o silêncio de desprezo, ou a calma sarcástica com que foi recebida a descoberta.

- Senhor Wilson - disse o dono da casa, abaixando-se para apanhar de sob seus pés uma capa extremamente luxuosa de peles raras -, Senhor Wilson, isto lhe pertence. (O tempo estava frio e, ao deixar meu próprio quarto, lançara uma capa sobre meu roupão, desfazendo-me dela ao chegar ao teatro do jogo.) Presumo que seja supérfluo - e olhou as dobras da capa com um sorriso amargo - procurar aqui qualquer outra prova a mais de sua habilidade. Na verdade, já chega, e bastante. O senhor reconhecerá a necessidade, assim o espero, de abandonar Oxford; de qualquer modo, de abandonar instantaneamente minha casa.

Envilecido, humilhado até o pó, como então estava, é provável que eu devesse ter-me vingado daquela mortificante linguagem com uma imediata violência pessoal, não tivesse sido toda a minha atenção no momento detida por um fato do mais impressionante caráter. A capa, que eu tinira usado, era de uma qualidade rara de pele; quão rara e quão extravagantemente custosa não me aventurarei a dizer. Seu corte, também, era de minha própria e fantástica invenção, pois eu era, em questões dessa frívola natureza, um peralvilho exigente até o grau mais absurdo. Quando, portanto, o Sr. Preston entregou-me aquilo que apanhara do chão, perto dos batentes da porta do aposento, foi com um espanto quase limítrofe do terror que percebi minha própria capa pendente já de meu braço (onde eu sem dúvida a tinha colocado inadvertidamente) e da qual a outra que me apresentavam era apenas a exata reprodução, em todos e até mesmo nos mínimos particulares possíveis. A singular criatura que tão desastrosamente me havia comprometido estivera envolvida, lembrava-me, em uma capa; e nenhuma fora usada, absolutamente, por qualquer dos membros de nosso grupo, com exceção de mim mesmo. Conservando alguma presença de espírito, tomei a capa que me foi oferecida por Preston, coloquei-a, sem que o percebessem, por cima de minha própria capa, deixei o aposento com uma resoluta carranca de desafio e, na manhã seguinte, antes mesmo do raiar do dia, iniciei precipitada viagem de Oxford para o continente, num estado de perfeita angústia, de horror e de vergonha.

Fugi em vão. Minha má sorte me perseguiu, como se em triunfo, e mostrou realmente que a ação de seu misterioso domínio tinha apenas começado. Mal tinha eu posto o pé em Paris, já possuía prova evidente do detestável interesse tomado por aquele Wilson a meu respeito. Anos passavam sem que eu experimentasse alívio algum. Canalha! Em Roma, com que inoportuna, embora espectral solicitude, intrometeu-se ele entre mim e minha ambição! Em Viena também, em Berlim e em Moscou! Onde, na verdade, não tinira eu um amargo motivo de amaldiçoá-lo, do íntimo do coração? Da sua inescrutável tirania eu fugia por fim, tomado de pânico, como de uma peste; e até aos confins da terra fugi em vão.

E sempre, e sempre mais, em secreta comunhão com meu próprio espírito, perguntava eu: "Quem é ele? Donde vem? E quais são os seus objetivos?" Mas nenhuma resposta ali encontrava. E então eu pesquisava, com minudente sondagem, as formas, os métodos e os traços principais de sua impertinente vigilância. Mas mesmo aí havia muito pouco sobre que basear uma conjetura. Era visível, de fato, que em nenhuma das múltiplas vezes, em que tivera recentemente de cruzar meu caminho, o fizera sem ser para frustrar aqueles planos, ou perturbar ações que, se plenamente realizadas, teriam resultado em acerbo mal. Pobre justificação esta, na verdade, para uma autoridade tão imperiosamente usurpada! Pobre indenização para os direitos naturais de livre arbítrio, tão pertinaz e tão insultuosamente negados!

Fora também forçado a notar que meu carrasco, durante longo período de tempo (enquanto escrupulosamente e com miraculosa habilidade mantinha seu capricho de uma identidade de traje comigo) tinha-se arranjado de tal maneira, em todas as ocasiões em que interferira na minha vontade, que eu não vira, em momento algum, as feições de seu rosto. Fosse Wilson quem fosse, isto, pelo menos, era apenas o cúmulo da afetação ou da loucura. Podia ele, por um instante, ter suposto que no meu admoestador de Eton, no destruidor de minha honra em Oxford, naquele que frustrou minha ambição em Roma, minha vingança em Paris, meu apaixonado amor em Nápoles, ou aquilo que ele falsamente denominou de minha avareza no Egito, que naquele meu arqui-inimigo e diabólico gênio, eu deixaria de reconhecer o William Wilson de meus dias de colégio, o xará, o companheiro, o rival, o odiado e temido rival do colégio do Dr. Bransby? Impossível! Mas apressemo-nos a descrever a última e culminante cena do drama.

Até então eu sucumbira passivamente àquele imperioso domínio. O sentimento de profundo temor com que habitualmente encarava o caráter elevado, a sabedoria majestosa, a aparente onipresença e onipotência de Wilson, acrescentado mesmo a uma sensação de terror que certos outros traços de sua natureza e de sua arrogância me inspiravam, tinha conseguido, até então, imprimir em mim uma ideia de minha própria fraqueza extrema e desamparo, e sugerir uma submissão implícita, embora amargamente relutante, à sua vontade arbitrária. Mas, nos últimos dias, entregara-me inteiramente ao vinho; e sua enlouquecedora influência sobre meu temperamento hereditário tornou-me cada vez mais insubmisso ao controle. Comecei a murmurar, a hesitar, a resistir. E seria apenas a imaginação que me induzia a acreditar que, com o aumento de minha própria firmeza, a do meu carrasco sofria uma diminuição proporcional? Fosse como fosse, comecei então a sentir o bafejo de uma esperança e por fim nutri em meus pensamentos secretos uma resolução desesperada e austera, de que não me submeteria por mais tempo à escravidão.

Foi em Roma, durante o carnaval de 18... Assistia eu a um baile de máscaras, no palácio do napolitano Duque Di Broglio. Eu me entregara, mais livremente do que de costume, aos excessos do vinho: e agora a sufocante atmosfera das salas apinhadas irritava-me insuportavelmente. A dificuldade, também, em abrir caminho através dos grupos compactos, contribuía não pouco para exasperar-me o gênio: pois eu estava ansioso à procura (permiti que não vos diga com que indigna intenção) da jovem, da alegre, da bela mulher do velho e caduco Di Broglio. Com uma confiança igualmente inescrupulosa, ela me havia previamente revelado o segredo da fantasia com que estaria trajada, e agora, tendo-a vislumbrado, apressava-me em abrir caminho até ela. Neste momento senti uma mão pousar levemente sobre meu ombro e ouvi aquele sempre lembrado, aquele baixo e maldito sussurro, dentro em meu ouvido.

Num total frenesi de cólera voltei-me imediatamente para quem assim me interrompera e agarrei-o violentamente pelo pescoço. Trajava ele, como eu havia esperado, uma roupa inteiramente igual à minha; trazia uma capa espanhola de veludo azul, cingida em torno da cintura por um cinturão escarlate, que sustentava um florete. Uma máscara de sêda preta encobria-lhe inteiramente o rosto.

- Canalha! - disse eu, numa voz rouca de raiva, ao passo que cada sílaba, que eu pronunciava, parecia alimentar cada vez mais minha fúria. - Canalha! Impostor! Maldito vilão! Não mais, não mais você me perseguirá como um cão, até a morte! Siga-me, ou eu o atravessarei aqui mesmo com este florete!

E rompi caminho para fora da sala de baile, até uma pequena antecâmara ao lado, arrastando-o irresistivelmente comigo.

Depois de entrar, atirei-o furiosamente para longe. Ele bateu de encontro à parede, enquanto eu fechava a porta, com uma praga, e lhe ordenava que puxasse a arma. Ele hesitou, mas apenas um instante; depois, com leve suspiro, puxou-a em silêncio, e pôs-se em guarda.

A luta foi deveras curta. Eu estava frenético, no paroxismo da excitação selvagem e sentia no meu simples braço a energia e a potência de uma multidão. Em poucos segundos obriguei-o, só pela força, a encostar-se ao entablamento da parede e assim, tendo-o à mercê, mergulhei minha espada, com bruta ferocidade e repetidamente, no seu peito.

Naquele instante alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar uma intromissão, e, em seguida, voltei imediatamente para meu antagonista moribundo. Mas que língua humana pode adequadamente retratar aquele espanto, aquele horror, que de mim se apossou, diante do espetáculo que então se apresentou à minha vista? O curto instante, em que desviei meus olhos, tinha sido suficiente para produzir, ao que parecia, uma mudança positiva na disposição, na parte mais alta ou mais distante do quarto. Um grande espelho, assim a princípio me pareceu na confusão em que me achava, erguia-se agora ali, onde nada fora visto antes; e como eu caminhasse para ele, no auge do terror, minha própria imagem, mas com as feições lívida e manchadas de sangue, adiantava-se ao meu encontro, com um andar fraco e cambaleante.

Assim parecia, digo eu, mas não era. Era meu adversário, era Wilson que então se erguia diante de mim, nos estertores de sua agonia. Sua máscara e sua capa jaziam ali no chão, onde ele as havia lançado. Nem um fio, em todo o seu vestuário, nem uma linha em todas as acentuadas e singulares feições de seu rosto, que não fossem, mesmo na mais absoluta identidade, os meus próprios.

Era Wilson; mas ele falava, não mais num sussurro, e eu podia imaginar que era eu próprio que estava falando, e assim dizia:

Venceste e eu me rendo. Contudo, de agora por diante, tu também estás morto... Morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança! Em mim tu vivias... e, na minha morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente assassinaste a ti mesmo!

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