A Língua do P - Clarice Lispector | Conto Completo | Fantástica Cultural

Artigo A Língua do P - Clarice Lispector | Conto Completo
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A Língua do P - Clarice Lispector | Conto Completo

Autores Selecionados ⋅ 25 nov. 2023
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Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos.

Este conto é parte do livro A Via Crucis do Corpo.


Maria Aparecida — Cidinha, como a chamavam em casa — era professora de inglês. Nem rica nem pobre: remediada. Mas vestia-se com apuro. Parecia rica. Até suas malas eram de boa qualidade.

Morava em Minas Gerais e iria de trem para o Rio, onde passaria três dias, e em seguida tomaria o avião para Nova Iorque.

Era muito procurada como professora. Gostava da perfeição e era afetuosa, embora severa. Queria aperfeiçoar-se nos Estados Unidos.

Tomou o trem das sete horas para o Rio. Frio que fazia. Ela com casaco de camurça e três maletas. O vagão estava vazio, Você também pode gostar: Leia na Fantástica os Melhores Contos de Clarice Lispector só uma velhinha dormindo num canto sob o seu xale.

Na próxima estação subiram dois homens que se sentaram no banco em frente ao banco de Cidinha. O trem em marcha. Um homem era alto, magro, de bigodinho e olhar frio, o outro era baixo, barrigudo e careca. Eles olharam para Cidinha. Esta desviou o olhar, olhou pela janela do trem.

Havia um mal-estar no vagão. Como se fizesse calor demais. A moça inquieta. Os homens em alerta. Meu Deus, pensou a moça, o que é que eles querem de mim? Não tinha resposta. E ainda por cima era virgem. Por que, mas por que pensara na própria virgindade?

Então os dois homens começaram a falar um com o outro. No começo Cidinha não entendeu palavra.

Parecia brincadeira. Falavam depressa demais. E a linguagem pareceu-lhe vagamente familiar. Que língua era aquela?

De repente percebeu: eles falavam com perfeição a língua do "p". Assim:

— Vopocêpê repepaparoupou napa mopoçapa boponipitapa?

— Jápá vipi tupudopo. Épé linpindapa. Espestápá nopo papapopo.

Queriam dizer: você reparou na moça bonita? Já vi tudo. É linda. Está no papo.

Cidinha fingiu não entender: entender seria perigoso para ela. A linguagem era aquela que usava, quando criança, para se defender dos adultos. Os dois continuaram:

— Queperopo cupurrapar apa mopoçapa. Epe vopocêpê?

— Tampambémpém. Vaipaipi serper nopo túpúnelpel.

Queriam dizer que iam currá-la no túnel... O que fazer? Cidinha não sabia e tremia de medo. Ela mal se conhecia. Aliás nunca se conhecera por dentro. Quanto a conhecer os outros, aí então é que piorava. Me socorre, Virgem Maria! me socorre! me socorre!

— Sepe repesispistirpir popodepemospos mapatarpar epelapa.

Se resistisse podiam matá-la. Era assim então.

— Compom umpum pupunhalpal. Epe roupoubarpar epelapa. Matá-la com um punhal. E podiam roubá-la.

Como lhes dizer que não era rica? que era frágil, qualquer gesto a mataria. Tirou um cigarro da bolsa para fumar e acalmar-se. Não adiantou. Quando seria o próximo túnel? Tinha que pensar depressa, depressa, depressa.

Então pensou: se eu me fingir de prostituta, eles desistem, não gostam de vagabunda.

Então levantou a saia, fez trejeitos sensuais — nem sabia que sabia fazê-los, tão desconhecida ela era de si mesma — abriu os botões do decote, deixou os seios meio à mostra. Os homens de súbito espantados.

— Tápá dopoipidapa.

Está doida, queriam dizer.

E ela a se requebrar que nem sambista de morro. Tirou da bolsa o batom e pintou-se exageradamente. E começou a cantarolar.

Então os homens começaram a rir dela. Achavam graça na doideira de Cidinha. Esta desesperada. E o túnel?

Apareceu o bilheteiro. Viu tudo. Não disse nada. Mas foi ao maquinista e contou. Este disse:

— Vamos dar um jeito, vou entregar ela pra polícia na primeira estação. E a próxima estação veio.

O maquinista desceu, falou com um soldado por nome de José Lindalvo. José Lindalvo não era de brincadeira. Subiu no vagão, viu Cidinha, agarrou-a com brutalidade pelo braço, segurou como pôde as três maletas, e ambos desceram.

Os dois homens às gargalhadas.

Na pequena estação pintada de azul e rosa estava uma jovem com uma maleta. Olhou para Cidinha com desprezo. Subiu no trem e este partiu.

Cidinha não sabia como se explicar ao polícia. A língua do "p" não tinha explicação. Foi levada ao xadrez e lá fichada. Chamaram-na dos piores nomes. E ficou na cela por três dias. Deixavam-na fumar. Fumava como uma louca, tragando, pisando o cigarro no chão de cimento. Tinha uma barata gorda se arrastando no chão.

Afinal deixaram-na partir. Tomou o próximo trem para o Rio. Tinha lavado a cara, não era mais prostituta.

O que a preocupava era o seguinte: quando os dois haviam falado em currá-la, tinha tido vontade de ser currada. Era uma descarada. Epe sopoupu upumapa puputapa. Era o que descobrira. Cabisbaixa.

Chegou ao Rio exausta. Foi para um hotel barato. Viu logo que havia perdido o avião. No aeroporto comprou a passagem.

E andava pelas ruas de Copacabana, desgraçada ela, desgraçada Copacabana.

Pois foi na esquina da rua Figueiredo Magalhães que viu a banca de jornal. E pendurado ali o jornal O Dia.

Não saberia dizer por que comprou.

Em manchete negra estava escrito: "Moça currada e assassinada no trem".

Tremeu toda. Acontecera, então. E com a moça que a desprezara.

Pôs-se a chorar na rua. Jogou fora o maldito jornal. Não queria saber dos detalhes. Pensou:

— Épé. Opo despestipinopo épé impimplaplacápávelpel. O destino é implacável.

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